sábado, dezembro 20, 2003

 

Uma Madrugada na Urgência (4)

.
Onde está ele?

Foi nessa altura que voltou o tal arrepio gelado nas costas e me lembrei – O filho!! …merda! - Naqueles minutos acelarados nunca mais me tinha lembrado. Deviamos ter dito qualquer coisa.
- Vamos ter chatices, doutora – preocupei.
- Porquê?.. – disse vaga.
- Quando o homem chegou à bocado, o filho vinha com ele… e estava só a fazer barulho, berraria. Acabei por pô-lo lá for a um bocado à bruta… - continuei.
- …
- … e nunca mais dissemos nada! – findei.
- Pois, doutor Pedro!
- Paulo!
- Pois, Paulo.
A cara continuava vaga e distante, parecia nem estar a ouvir. Pelos costumes, ficava para um interno já avançado a tarefa ingrata de comunicar aos familiares o triste desfecho. Neste caso era eu, e tinha que me aguentar com a tempestade que se anunciava. Revi o filho, encorpado, abestalhado, pronto para tudo… enfim, uma tempestade tumultuosa. E eu, estava pronto para tudo?
- Deixe, que eu trato de tudo. – concluiu ainda mais vaga.
Nesse momento não senti, ainda, um enorme alívio, apenas uma pequena satisfação por me escapar a uma tarefa que se previa difícil. Sentei-me na sala da televisão, duas portas ao lado dos directos e pus-me a fingir que via qualquer coisa que passava. Ao mesmo tempo tinha aquela desagradável sensação que estava a fugir de algo…Para ajudar, veio novamente o tal enfermeiro que se alongava no tema.
- Conheço a peça, doutor...! Um bruto, arranja sempre problemas. Mas um bruto...- dizia.
- Ora... não há-de ser nada.
- Não sei… olhe que se ele o apanha, não sei! – e os olhos gozavam.
- Eh pá!… obrigadinho.. sinto-me melhor, muito mais aliviado! - ajudei.
Uns segundos, minutos depois ouço vozes que sobressaem nos directos. As vozes sobressaem mais… de repente um estrondo, berros e soa ecoando por toda a Urgência:
- Onde está ele?… Onde está ele!!
O enfermeiro sai da sala e parte rápido para onde contiuavam os estrondos, as vozes, a confusão. Ele, era eu! O filho em fúria desalmada derrubara uma maca e entara na sala ao lado dos directos, o Balcão de mulheres à procura do médico culpado.
Nessa altura já sentia o enorme alívio por a doutora Lídia ter “tratado de tudo”. Ao mesmo tempo sentia uma enorme angústia que quase me paralisava. Sentado, sozinho, naquela sala queria sair e dizer bravamente – Estou aqui… o que foi? – mas outra força mantinha-me sentado e só pensava – E se ele entra aqui, o que faço? Levanto-me e pego-o de caras ou pulo pela janela?
Nunca soube o que faria. O barulho amainou e começou a soar a voz da doutora Lídia, pausada, segura e autoritária. Não ouvia o que ela dizia mas senti-me confortável e seguro. Ele não entrou pela porta, mas se entrasse acho que nem o pegava de caras, nem pulava pela janela...
Depois de a doutora Lídia me vir dizer – Está tudo bem! - sem mais nada, com aquela expressão indiferente onde despontava um ligeiro sorriso maternal, já não preguei mais olho. Fiquei-lhe sempre intimamente grato, embora nunca lho tenha dito: fez-me o que, ainda hoje, eu gostava de fazer a um colega.
A partir dessa altura passei a gostar, só um pouco mais, de fazer os famosos bancos nocturnos com a Dr. Lídia e, no Serviço, fugia menos dela. Não foi por muito tempo. Eu segui outros rumos no Hospital e entretanto ela partiu para o Barreiro.
Nesse dia, por volta das nove horas, estávamos nós a passar o banco, vi o filho especado junto à porta do corredor, na entrada. Estava com o tio e ainda tinha um olhar de fúria mal contida com um brilho frio a bailar. Ao passar, parámos. A doutora Lídia disse umas palavras de circunstância e eu olhei-o de frente, acho que seguro e calmo.
- Desculpe aquilo na entrada… não era preciso ter sido assim.
Ele manteve o olhar, não disse nada mas eu senti-me um pouco melhor comigo mesmo. Só o tio respondeu.
- Está tudo bem, doutor… se não foi possível…
Continuámos a andar, deixá-mo-los para sempre para trás.
- Não gaste o seu latim doutor Pedro… aquilo é uma besta! – sorriu a doutora Lídia.

terça-feira, dezembro 16, 2003

 

Uma Madrugada na Urgência (3)

.
Vai ou não?

Entrou a Drª Lidia no seu passo miudinho e rápido, cara vaga e inexpressiva e sempre de permanente bem arrumada. Como consegue, mesmo às seis da manhã?
Era uma médica muito experiente, na altura Chefe de Serviço de Medicina. Tinha vindo de Macau há pouco tempo para onde tinha ido, dois ou três anos antes, curar males de desamores. Era uma mulher eléctrica, não parava, sempre ligada à corrente mas à força de muitos comprimidos, dizia-se. Tinha má fama entre os internos, nós, por nos pôr a trabalhar demais. No serviço fugiamos dela pois descobria sempre mais um doente, sem história clínica feita ou com mais seis ou sete exames complementares óbvios para serem pedidos, nos próximos cinco minutos. A Urgência com ela era um suplício, especialmente de noite… cada novo doente que internavamos era um mar de problemas clínicos, hipóteses diagnóstico e exames mirabolantes… de fugir! Está-se a ver que a minha decisão de a chamar, naquela noite, tinha sido corajosa.
Mas era uma excelente médica e colega, como ainda não tinha tido hipótese de comprovar.
- O que temos, doutor Pedro…- olhos brilhantes, cara vaga.
Mas porque insiste em chamar-me Pedro, porra!
- Edema pulmonar! Tem antecedente s de cardiopatia isquémica a começou com dor após o jantar… já começamos as medidas habituais… tem oxigénio a vinte litros e fez quatro fórmulas de furosemido. – disparei.
- idade? –ela.
- idade?.. –eu.
- Sessenta e oito… - o enfermeiro.
- está aquio o ECG… - divergi.
- …
- pode ter enfarte! – tentei.
- Acho que sim… não é bom! – ela – e já respondeu alguma coisa… diureses?
- Bahh! Ainda nada que se veja – confirmou o enfermeiro.
A partir dessa altura passei as rédeas à doutora Lídia e fiquei na mais cómoda posição de assistente. Assistente que apenas assistia e também ajudava, ás vezes, no que fosse preciso. Os minutos começaram a correr rápidos. Ali o pessoal era todo treinado, experiente e era como se fossem vultos esbranquiçados a vogar em volta do velho arfante que cada vez se via menos no meio de tanto soro, fios, cabos e luzes…A doutora Lídia, maestra, começava em frenesim; dois enfermeiros, ágeis, punham, tiravam e espetavam; os auxiliares corriam como autómatos a vozes de comando. As [medidas] fluem quase automáticas, cada vez mais cruentas mas o doente continuava a arfar… não melhora nada. Está cansado!
Agora os minutos correm mesmo rápidos, parecem segundos. Há nos olhares algum desânimo, uma quase certeza. De repente, num desses segundos, ouve-se um beeeeeee contínuo e, logo de seguida o doente acalma, pára de arfar, fica em paz.
- Está parado… - soa uma voz.
Estava parado! Não tinha sido por cansaço, foi o coração que não quis mais. Como que por um click imaginário todos saltamos e iniciamos novas manobras… tubos na garganta, massagem no peito, choques eléctricos, o que mais… mas sempre com a tal certeza nos olhares. Passados dez minutos verdadeiros a certeza era definitiva.
- Chega!… confirma-se o óbito… - soa de novo a voz.
Estava morto.

terça-feira, dezembro 09, 2003

 

Uma Madrugada na Urgência (2)

.
Nessa madrugada

Nesse dia estava na porta do Balcão um homem novo, mais ou menos da minha idade,, que era o que barafustava e levantava a voz. A seu lado, um homem mais velho arfava, aflito, encostado à parede. Um enfermeiro tentava acalmar o novo e sentar o velho.
- Que se passa? – acalmei.
- O meu pai… está mal, não vê? Está assim desde à bocado e já lhe doia o coração depois de jantar! – continuava a disparar.
O mais velho parecia mesmo aflito. Enquanto tentava não ouvir o filho, que continuava em rédea solta, auscultei rapidamente o pai. Edema pulmonar agudo
- Calma…, vamos já já ver isto. – assegurei.
- Calma, nada!… estou aqui há mais de cinco minuto e não me queriam deixar entrar… E o meu pai assim! – já gritava outra vez.
Já estava a ficar farto, a calma já lá ia. Acordar logo assim. O enfermeiro já sentara o doente e tinha colocado oxigénio nasal.
- Espere… - disse para o enfermeiro, e então gritei eu – Uma maca!… Sr. maqueiro, uma maca! – Sempre a mesma coisa, chegam estas horas e os maqueiros volatilizam-se
- Uma maca?… - gritou novamente o filho– o meu pai assim e você vai pô-lo aí numa maca.. era o que faltava! - esbracejava
Nesta altura podia ter mantido a tal calma com que iniciei a conversa e explicar que iamos por o pai dele numa maca, porque era melhor, porque a situação era grave e iamos leva-lo para a Sala de Directos para iniciar o tratamento. Mas, por vezes, nessas madrugadas tomamos caminhos que não são os nossos.
- Chega!… Nós vamos tratar o seu pai. Ele está bastante mal, como vê.. e você cala-se já! Não está aqui aos gritos que estão aqui pessoas doentes! - zanguei
- Calo-me?… essa é boa.. era o que faltava – desafiou, gritando.
- Cala-se e vai já lá para for a que não está aqui a fazer nada – ordenei.
- Não vou nada lá para for a! – ameaçou.
Já chegara o maqueiro, a maca e outra gente, que só chega quando já há barulho. Disse ao enfermeiro para ir para os directos com o doente e começar soros, diuréticos e oxigénio… o costume.
- Sr. Segurança… leve este senhor lá para fora!.. está aqui a incomodar toda a gente. – concluí.
- Você vai ver.. o meu pai assim.. nem sabe o que lhe acontece – desatinou.
- Já lhe disse… vamos tratar do seu pai! – E voltei costas.
Ao me encaminhar para os directos ainda o ouvia a esbracejar, a vociferar ameaças enquanto o segurança o tentava levar para a sala de espera do exterior. Podia ter sido mais suave, perder mais cinco minutos mas achei que tinha sido melhor assim. O tipo parecia uma besta com muito pouca capacidade de entendimento. Senti um novo arrepio rápido nas costas, mas já não parecia estar frio.
Nos directos já decorriam as primeiras medidas: veias canalizadas, oxigénio a mais de dez litros e monitores ligados.
- Sentado, tem que ficar sentado… têm garrotes? ECG, temos que fazer ECG – pensava alto.
- Não está muito bem.. as tensões estão baixotas – disse o enfermeiro.
- Quantos furosemidos já demos? – perguntei enquanto o via a arfar.
- duas ampolas - respondeu
- dê mais 2 formulas… as tensões aguentam! - decidi
Auscultei novamente, estava completamente encharcado, Pálido, arfava e colocava as mãos no peito. Os olhos suplicavam uma ajuda que tardava. Agora tinhamos que aguardar um pouco e, enquanto lhe colocavam a algália, apurei que tinha antecedentes de angina de peito ou enfarte. Com esta dor no peito não augurava nada de bom.
- Aguentou-se bem com o filho, doutor… eu conheço-o… é um brutamontes, só arranja problemas! – voltou o enfermeiro.
- Pois… podem chamar a Drª Lídia? – respondi.
Uma excelente medida, pensei. E enquanto esperavamos a Dr. Lídia passei a observar. Parecia um pouco mais calmo, se era possível. Já estava algaliado, ia-se começar o ECG. Há que esperar que o furosemido actue, que chupe toda aquela agua que está a mais nos pulmões e a envie direitinha para os rins e bexiga. Há que esperar! Se tivermos coração à altura, temos homem.

terça-feira, dezembro 02, 2003

 

Uma Madrugada na Urgência (1)

.
De madrugada

Quando enfiou a lâmina macia no pernil os nossos olhos brilhavam. Os do Pedro chispavam… gostava sempre de dar o primeiro golpe! O momento era de tensão à medida que aprofundava o corte – Uma perfeição… isto está do melhor! – ouviu-se – Podes crer – apoiou-se! – o vinho não vai ficar atrás.
O pernil de porco, assado como convém, era um manjar de se chorar no Álvaro, e hoje iamos chorar muito, de certeza. Foi nessa altura que começamos a ouvir um burburinho lá for a e uma voz que sobressaía
- mas porque é que eu não posso entrar? – levantava.
- …
- mas eu quero entrar… - levantava ainda mais.
Que coisa. Mas para que é isto!
- O meu pai está mal… não está nenhum médico aí dentro? – já gritava.
Como…? Mas como sabe que estou aqui?… logo aqui!. logo aqui?…
Acordei. Doiam-me as costas e sentia frio pois há algum tempo que estava caído, em sono solto, na maca dura do Balcão Homens do hospital. Acabou-se o pernil… já não estava a chorar!
Nesse tempo ainda dormia como um morto, ou um anjo, em qualquer lugar. Acalmando a noite na Urgência, lá pelas três ou quatro da manhã, aterrava numa maca e escondido atrás do tabique, dormia. Dormia a sério, até sonhava! Fosse agora…
Acordei, doiam-me um pouco as costas e tinha frio. Eram cerca de seis da manhã e o ar condicionado atingira o seu esplendor por essa altura. Enquanto saía do esconderijo para ver o que se passava, senti um rápido arrepio nas costa. Tinha mesmo frio. Áquela hora da madrugada o balcão tinha um ar fantasmagórico, a penumbra já ia clareando mas ainda reinava o tom pardo e silencioso da noite. Nas boxes e macas, um pouco por todo o lado jaziam corpos de doente, de outros menos doentes e também dos seu esforçados curadores. Era um mundo quase mágico pois estavam todos calmos, repousados, alguns até pareciam sorrir. Por essas poucas horas todos os males aliviavam, não se gemiam gemidos, não se ouviam queixumes.
Nessa altura lemberi-me de uma história, passada tempos antes… um homem já idoso, bem idoso, entrara na Urgência por estas horas, por estas horas, bastante mal. Vinha praticamente a despedir-se e pouco depois, depois de algumas medidads mais expectantes que efectivas, despediu-se mesmo se demoras. Após a sua retirada para a morgue, o Dr. Videira, médico já tarimbado, chefe de equipa, sempre com um ar distante e austero chamou o filho para dar-mos a notícia. Passados minutos entra o homem neste pequeno mundo mágico, o balcão estava como hoje: calmo, escuro, silencioso e frio, e em todos os cantos repousavam doentes. Com passos pequenos e cautelosos aproximou-se de nós, lançando miradas rápidas em redor. O Dr. Videira deu-lhe a notícia que ele já sabia com calma profissional. Após um breve momento de resignação o homem olhou então em volta, já não uma pequena mirada, mas um olhar demorado ainda que intimidado e assustado, e desabafa.
- Já se sabia… esta idade, as doenças!… Só uma coisa, posso vê-lo, qual é ele, deste corpos?
- …
O Videira ficou mudo e eu começei a rir, silêncioso! Então não é que o homem pensava que estava no meio de dezenas de mortos! Nessa altura, de repente, muito de repente levanta-se de uma maca o Soleiro, médico meio doido, pálido, de olhar esbugalhado e cabelos revoltos e soltou um ahhh vindo das profundezas. O homem deu dois passos atrás e a expressão passou de asssustado a aterrado. Estava a ver Lázaro!
Não resisti... saí do balcão em passo rápido, com um riso ruidoso.