quinta-feira, abril 28, 2005

 

Recebi outra carta

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Foi hoje, na consulta.
O senhor Costa é um respeitável velhote, com quase oitenta anos de idade, e esteve internado há cerca de um mês, no nosso Serviço, devido a uma colite isquémica. Hoje compareceu na consulta de seguimento e aparentava um óptimo aspecto, tão bom que nem o reconheci, ao princípio.
Após os cumprimentos iniciais, lá lhe fui fazendo as perguntas de rotina: se se sentia bem, se tinha - ou não - dores abdominais, se o trânsito intestinal estava - ou não - regularizado, se tinha - ou não - notado novamente sangue nas fezes, e por aí fora. E tudo parecia estar bem, ou quase… o problema era a cor das fezes: quando saiam tinham um tom vagamente avermelhado, não vermelho sangue, mas um outro avermelhado, guerná talvez, às vezes um castanho encarniçado, mas quando secavam não se notava, ou às vezes secas é que pareciam meio vermelhuscas, ou não…
Eu lá lhe ia dizendo que não era muito importante, que teriamos fazer um novo exame, de qualquer modo, para ver se tudo tinha resolvido bem. E que aí, ficaríamos descansados… Mas nada, ele não parava de confabular ácerca da cor das ditas
Às tantas, parecendo já entrar noutro assunto, diz ele:
- Quer ver...?
- ...?
E tira um envelope do bolso de dentro do casaco. E mostra-mo…
Era um envelope, bem fechado, com uma daquelas janelinhas transparentes para se ver a morada do destinatário. Neste envelope, por essa janelita, via-se um bocado de papel higiénico, cuidadosamente esticado, com restos secos de uma cagadela. Castanhos, definitivamente.
- Está a ver!
- ...!
- Nota algum tom avermelhado, doutor?
- Não, são castanhas…
- Ahhh...

Como já da outra vez tinha dito, cada um recebe as cartas que merece!


Nota: Imagens reveladoras, aqui!

domingo, abril 24, 2005

 

O Emanuel

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O Emanuel tornou-se uma estrela da televisão.
O Emanuel representa um drama humano e logo toda a história nos é contada, com música de embalar e imagens a condizer.
O Emanuel tem 14 anos, é orfão de mãe, foi abandonado pelo pai e actualmente vive na urgência de um hospital. Em virtude disso, é um miudo com alguns problemas psicológicos (quem não o seria…), mas muito meigo e carinhoso. É interessado e trabalhador: já ajuda na carpintaria do hospital e o seu sonho é ser, um dia, médico. E todos lhe reconhecem esse potencial. O seu futuro está comprometido pelo abandono a que está submetido: nenhuma instituição de apoio à infância o aceita e não se percebe bem porquê!
Esta foi, basicamente, a história que nos foi contada, nas televisões, com música de embalar e imagens pungentes.

O que se segue, é a história do Emanuel que eu conheço.
O Emanuel tem graves problemas psiquiátricos, bem conhecidos desde a mais tenra idade. Não sei exactamente o diagnóstico, que foge bastante da minha área: ou uma esquizófrenia ou um desvio do comportamento/paranóia. Está sujeito a forte medicação psiquiátrica a que se escapa sempre que pode. Tem a curiosa mania de engolir pilhas: todo o tipo de pilhas, de rádio ou de lanterna, pequenas ou grandes, alcalinas ou não-alcalinas… nisso, não é esquisito. No inicio da sua estadia na urgência era conhecido pelo Pilhão. Teve vários internamentos por esse motivo e, por diversas vezes, foi ao Hospital D. Estefânia retirar endoscopicamente as boas das pilhas. Só que, muitas vezes, ia tirar três pilhas a Lisboa e, no caminho de regresso – na ambulância – papava outras quatro. Até que um dia veio um relatório do Hospital a dizer que este tipo de pilhas não constituia risco, que não precisavam de ser removidas, e o Emanuel deixou de ir a Lisboa. E passou a comer menos pilhas.
O Emanuel pode ser violento. Na família, com assistentes sociais, com juízes já houve várias tentativas de agressão, quando as coisas não lhe corriam bem. Há cerca de 1 ano estava internado num Serviço de Pediatria (por causa das pilhas…) e, após algumas semanas de conversações com a família e a assistência social, foi decidida a alta. Um médico, já graduado, calma e pacientemente lá lhe foi explicando que ia ter alta, que ia voltar para casa… O Emanuel não queria e ia ficando agitado. O médico lá dizia que tinha que ser e que ia ter apoio… e o Emanuel mais agitado. De repende grita – Não quero! -, dá um pontapé nos tomates do médico e foge pelo corredor. O agredido cai redondo no chão e, entre dolorosos ais, diz – Amanhã de manhã, vai para casa… aiiii!. E o Emanuel pendurou-se das escadas, aos gritos de que se ia matar.
O Emanuel tem 14 anos. Tem a segunda classe e mal sabe ler ou escrever… não consegue. O Emanuel nunca irá ser médico e, provavelmente, nunca irá ser carpinteiro.
O Emanuel, de facto, é orfão de mãe. O pai casou de novo e tem outros filhos. O pai "aguentou" durante anos a doença do filho mas desde há muito que lhe é impossível manter o Emanuel em casa. Já solicitou, por diversas vezes, o apoio de instituições para o acompanhamento do filho, sem resultado. Agora, fartou-se!
E porque é que o Emanuel vive numa urgência e nenhuma instituição o acolhe?
Porque "parece" existir um parecer de um tribunal, nunca revogado, a ordenar um internamento compulsivo numa instituição psiquiátrica. Mas também existem pareceres de psiquiatras a comprovar que o Emanuel está medicado, estável e não necessita de internamento. Então, e enquanto este embróglio não se resolve, o Emanuel está num limbo. Ninguém o quer:
O pai argumenta não ter condições em casa para o receber.
Nenhuma instituição de apoio à infância o aceita porque existe o tal parecer do tribunal.
Os Serviços de Psiquiatria ou Pedopsiquiatria não o internam porque está estável e bem medicado
Para a Medicina não vai porque tem idade pediátrica.
Na Pediatria não o querem porque tem pelos nas pernas, é maior que as médicas e enfermeiras e já faz insinuações da cariz menos próprio. E ainda lá está o médico que levou o tal pontapé…

Assim, fica na urgência… E serve para as televisões fazerem reportagens humanas. E serve para, à custa dele, se fazerem promoções de imagem de terceiros.

terça-feira, abril 19, 2005

 

Notícias

Habemus Papa: Bento XVI, aka Cardeal Ratzinger.
O nome soa-me algo estranho… tipo Cata Vento!

Hoje de manhã falei, em directo, para a Antena 1 sobre o rastreio do cancro do cólon e recto. Aconteceu no decurso de um Fórum, que versava sobre este assunto, durante o qual entraram em ligação comigo e lá expliquei o funcionamento da nossa experiência – pioneira, diga-se – neste campo: blá, blá… blá, bláá… blá, blá… blá, bléé… Em dez minutos despachei a coisa!
Foi um enorme sucesso, unanimamente (pois...) reconhecido. Mas, mesmo assim, escondido atrás dum telefone, fechado num gabinete e a poder olhar para as cábulas, não deixa de causar algum stress esta coisa do directo. Que querem, foi uma estreia!

sábado, abril 16, 2005

 

A prova do bode

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A propósito de um comentário, no blog de um outro médico (temos que pensar seriamente numa espécie de liga da médicosfera!), lembrei-me de um outro exame pelo qual os médicos têm que passar.

Chama-se "prova de comunicação médica" e é feito antes de o médico iniciar a sua actividade clínica. Este exame é bastante recente e eu - sim, já vou sendo velhote nestas coisas - não o fiz. Apareceu há cerca de cinco ou seis anos e foi motivado pela invasão crescente de médicos espanhois e dos países de leste. Estes médicos apareciam nos hospitais, após lhes serem dadas as devidas equivalências, para iniciar a sua actividade e, muitas vezes, não piavam uma palavra de português. Como é fácil de ver, este situação pode dificultar uma boa relação médico-doente.
Como, pela lei comunitária, não se pode descriminar o acesso ao trabalho a ninguém em função da língua, houve que inventar este exame. Como nós, portugueses, somos mais papista que o (defunto) Papa, decidiu-se que a prova deveria ser feita por todos os médicos – incluindo os portugueses – antes de iniciar a sua actividade clínica. Não deixa de ser um bocado aberrante.

A prova é simples e consta de três partes: Na primeira parte, o jovem médico (ou menos jovem, até) tem que entrevistar um doente - em português suficientemente fluente- com o objectivo de colher uma história clínica succinta, e estabelecer uma boa comunicação com o doente. Isto, na presença de um júri. Na segunda parte tem que escrever essa história clínica, também num português suficientemente correcto. Na terceira e última parte, tem que ler o seu relatório aos membros do júri, novamente em bom português, e responder a algumas preguntas/dúvidas sobre esse relatório. O resultado final é apto/não apto.
Entenda-se que o que ali se avalia não são os conhecimentos médicos do candidato mas sim a sua capacidade de comunicar, em termos médicos, com o doente e com outros profissionais. Foi uma forma de contornar de directiva comunitária e poder barrar o acesso a médicos que não soubessem patavina de português.

Já fiz parte de dois júris destes e, no geral, a coisa é uma grande farsa. No caso dos internos gerais portugueses (recém-licenciados) que têm que fazer o exame antes de concorrer a uma especialidade, a coisa é apenas uma conversa de amigos… Pronto, estás apto! No caso dos médicos estrangeiros vê-se de tudo: desde os que se empenharam, que tiveram explicações de português e que se esforçam para falar correctamente; até aos que se estiveram nas tintas e, escrevem e falam, uma coisa qualquer que se parece vagamente com o português.
O questão é que esta prova podia (e devia) ser mais rigorosa. Praticamente não há chumbos e as instruções das ARS vão precisamente nesse sentido: não apertar muito. Ou seja, Portugal no seu melhor: muito legalistas mas ainda mais porreiraços!

Mas a que propósito vem o bode?

Numa dessas provas, há dois ou três anos, lá apareceu uma jovem espanhola das Asturias, nervosa mas esforçada. Calhou-me a mim assistir à entrevista: ela tinha tido explicações de "português médico", durante umas semanas, e até se desenrascava bastante bem. O pior foi quando perguntou ao doente de que tinha morrido o pai. O velhote, um algarvio retinto lá de cima da serra, respondeu num sotaque cerrado: duma marrada dum bode!
Olhei para ela e vi um olhar de pânico. Perguntou mais duas vezes e obteve a mesma resposta. Tentou, também duas ou três vezes, advinhar o motivo do falecimento mas o velhote só abanava a cabeça. Olhou para mim, de olhos húmidos, a gritar ajuda... Pois, claro que lhe dei uma ajudinha. Merecia, e até era bem gira!

quarta-feira, abril 13, 2005

 

A amputação

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Qualquer um dia destes, acabo amputado... tenho a certeza.
Os sintomas estão todos cá:
Ressono, sonoramente, à noite. Este é-me dito com vêemencia, mas eu ainda não tenho bem a certeza.
Tenho um sono agitado, acordo frequentemente sobressaltado e de manhã, ao levantar, estou mais cansado do que à noite, ao deitar. Tenho dias em que me parece que alguém passou a noite aos pulos nas minhas costas.
Durante o dia, especialmente à tardinha, se calha poisar num sofá, passados cinco minutos estou a dormir que nem um bébé.
Tenho apneia do sono, de certeza.
Qualquer um dia destes sacam-me a úvula e o palato mole...

sábado, abril 09, 2005

 

Ontem, depois do almoço

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- Doutor, está a Ivete ao telefone… aquela, da consulta externa!
- Sim… e?
- Pergunta se pode aqui passar, para dar uma palavrinha…
- Diga-lhe que está bem, ainda vou estar aqui mais uma hora.

A Ivete é administrativa na Consulta Externa, ali no edifício ao lado, e é a tia do José. O José esteve internado no nosso Serviço há cerca de quatro meses, com uma crise inicial de Colite Ulcerosa, e a coisa não tinha corrido pelo melhor. A crise foi grave, teve má resposta à terapêutica, iniciou um quadro de megacólon tóxico e acabou no bloco, operado, por uma perfuração intestinal.

- Está aqui a Ivete…
- Diga-lhe que entre!

Eu estava na sala anexa ao secretariado, onde existe uma bancada de computadores e é o local onde fazemos os relatórios dos exames. È também o sítio de pouso do pessoal momentânemente desocupado, para se sentar ou dar dois dedos de conversa. Lá, atrás de um armário, mais escondido de quem passa, até dá para fumar um cigarrito.
A Ivete lá apareceu à porta, pequenina, com aquele aspecto sui-generis, e uma expressão sempre meio preocupada com os males do mundo.

- Posso doutor?
- Sim… entre!
- Ahhh… queria conversar consigo um bocadinho…
- Diga!
- Era particular…
- Ahhh… muito particular?
- Sim!
- Então vamos ali para o gabinete de consulta.

Bom… que quereria? Desde que o José fora operado, e o seguia na consulta, ela aparecia, semana-sim semana-não, para falar de qualquer dúvida ou de um novo sintoma. Mas habitualmente falávamos em qualquer sítio onde nos encontrássemos, ali mesmo, até no corredor… O que é que ela desta vez quereria?

- Então, diga lá…
- Ahhh… ó doutor, eu não queria que ficasse chateado comigo…
- Ora essa.
- Sim, doutror… eu trabalho aqui, sei como isto é! Mas o doutor há-de perceber…
- Vá lá, não há problema… diga lá!

Tanta preparação. Coisa boa não há-de ser… Terá o miúdo piorado? O José tinha tido algumas complicações pós-operatórias, o pequeno coto rectal mantinha uma inflamação importante, que nós não estávamos a resolver bem com os medimentos, e tinha feito uma deiscência da sutura com o aparecimento de um pequeno abcesso pélvico. Mas não… das outras vezes ela abordava-me sempre em qualquer lado, sem pruridos. Queres ver que foi para outro hospital?

- É que não sei se o doutro sabe mas eu tenho um Sindrome de Turner!
- …?
- Sim, diagnosticaram-me um sindrome de Turner quando era pequena…
- Ahh… sim, já me tinham dito. Mas…
- Pois… tenho Sindrome de Turner… – insistia - E conheço bem isto de médicos e hospitais…
- …?

Agora é que a coisa me estava a escapar, mas o que é que eu tinha a ver com o Sindrome de Turner dela… onde é que isto iria dar?

- Então…. E não queria que o doutor ficasse aborrecido, mas fomos à professora Tal em Lisboa.
- Ahhh… sim, não há problema nenhum. E?
- Fomos ouvir a opinião dela, uma vez que o caso do José está difícil…
- Sim Ivete, estes casos são complicados, são difíceis de resolver… é sempre bom ouvir outra opinião. Levaram todos os relatórios e exames?
- Sim doutor, e a professora foi muito simpática.

E a conversa lá continuou, sobre o que a professora tinha opinado ou sugerido e sobre o que iriamos fazer a seguir. Valha a verdade que a professora tal até tinha indicado um tratamento sem nenhuma lógica científica: tinha substituido a mesalazina rectal que nós estavamos a fazer por uma mesalazina oral. Ora como o José tem uma ileostomia, como a mesalazina actua directamente por via intestinal e não por absorção sistémica, esta toma por via oral "nunca" vai atingir o recto. Mas tudo bem, fica assim… pode ser que resulte!
E não cheguei a perceber bem aquela introdução do Sindrome de Turner. Ou foi para justificar o seu acesso facilitado à consulta de outro hospital, ou foi para reforçar a noção de que eu não me podia zangar com ela, tipo: sou deficiente, não posso ser chateada!
Aceitam-se palpites.

sexta-feira, abril 08, 2005

 

Tempos Modernos

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Os sinais começaram a notar-se há cerca de um mês.

De repente, uma revoada de novos computadores inundaram o Hospital. Só no nosso serviço cairam cinco deles, apenas resistindo uma salita com as velhas máquinas. E não são uns computadores quaisquer, são uns Celeron XPTO, com écrans TFT negros de 17 polegadas e impressoras laser XL.
Esta semana, os serviços foram invadidos por uma série de executivos que, de maquineta em punho (tipo PDA), anotavam as caracteristicas e mediam a altura e largura de tudo o que encontrvam pela frente: cadeiras, cacifos, mesas, armários, computadores, sei lá… ao fim de dois dias estava tudo inventariado, e todo o material ostenta a sua etiqueta de barras com a sigla do hospital.
Ontem, todo o pessoal recebeu uma notificação (e respectivas requisições) para realizar um rol de análises e um Rx de torax durante o mês de Abril, e para se apresentar na Medicina do Trabalho do hospital durante o mês de Maio. De certa forma, também vamos ser inventariados… Paulo, médico, 1.76 m, 84 kg, saudável: é o que poderá "dizer" a minha etiqueta de barras. Será que me a irão imprimir nalguma parte do corpo?

De qualquer forma, julgo ser positivo: nota-se que a coisa quer mexer, parece existir uma lufada de ar fresco. Temos que nos adaptar aos tempos modernos!