segunda-feira, agosto 29, 2005

 

Uma maldade

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Pois, nestes últimos dias tenho andado com a cabeça noutro lado. Obrigação, é claro... um resumo, para uma prelecção sobre doenças inflamatórias, anda-me a moer o juízo desde sábado.
E, como a vida não é feita só de pequenas histórias, de breves momentos, de sorrisos que nos tocam, lembrei-me de vos pregar uma partida: deixar-vos o parco resultado de 2 dias de trabalho.
Ainda é um draft, digamos... aceito sugestões!

Doenças Inflamatórias Intestinais

As Doenças Inflamatórias Intestinais (DII) – Colite Ulcerosa e Doença de Crohn - são doenças de etiologia desconhecida, de carácter inflamatório e crónico e que, além de envolverem primáriamente o tubo digestivo, têm um caracter sistémico com envolvimento de diferentes orgãos e sistemas: osteo-articular, cutâneo, ocular e hepato-biliar. Embora a sua etiologia permaneça desconhecida, nos últimos anos têm-se dados passos substânciais quanto ao esclarecimento dos mecanismos etiopatogénicos destas doenças.
A sua génese parece ser multifatorial, assentando em dois mecanismos complementares. Por um lado existirá uma predisposição genética, que causa um alteração dos mecanismos de imunorregulação a nível da mucosa intestinal e/ou uma alteração da permeabilidade intestinal, e que torna o indivíduo susceptível de adquirir a doença no decurso da vida. Neste campo, já foi identificado o gene NOD2, cujos polimorfismos estão associados ao aparecimento da forma ileo-cólica da Doença de Crohn. Por outro lado, para que a doença se desenvolva, deverá existir um factor ambiental que funcione como desencadeador da doença. Os dados mais recentes apontam esse factor como sendo infeccioso, podendo não ser uma infecção declarada mas sim apenas alterações qualitativas da flora intestinal. Desta maneira, uma determinada alteração da flora intestinal – com predomínio de determinadas estirpes – num indivíduo genéticamente susceptível, levaria a um aumento da permeabilidade intestinal, activação das citoquinas pró-inflamatórias locais e aparecimento do processo inflamatório intestinal.
Em termos epidemiológicos, a doença incide igualmente nos dois sexos e mairitariamente entre os 15 es os 50 anos de idade. A incidência global da DII tem vindo a crescer, de forma sustentada, nas últimas décadas mas mantém uma forte variabiliade regional: as altas incidências encontram-se na América do Norte e Europa do Norte (15 a 20 casos/100.000 hab/ano para Colite Ulcerosa e 10 a 15 casos/100.000 hab/ano para Doença de Crohn), indidência moderada na Europa do Leste, bacia mediterrânica e América do Sul (10 a 12 casos/100.000 hab/ano para Colite Ulcerosa e 6 a 9 casos /100.000 hab/ano pa.ra Doença de Crohn) e baixa incidência na África e Ásia (2 a 5 casos/100.000 hab/ano)
O diagnóstico da DII pode ser complexo. Devem existir sintomas sugestivos desta patologias – diarreia, hematoquésia e dor abdominal – associados a parâmetros laboratoriais de inflamação – leucocitose, aumento da VS e elevação da PCR – para ser levantada a suspeita clínica e iniciados os exames complementares de diagnóstico necessários. A confirmação diagnóstica assenta na existência aspectos endoscópicos, radiológicos ou histológicos sugestivos de DII e na exclusão de de uma patologia infecciosa, neoplásica ou isquémica. Como não existe um critério diagnóstico unívoco o diagnóstico diferencial, com outras patologias ou entre Colite Ulcerosa e Doença de Crohn, nem sempre é fácil: em 10% dos casos a distinção entre as duas formas de doença não é possível e fica referênciada como colite indeterminda ou não classificada.
Estes exames complementares, além de nos fornecerem o diagnóstico, permitem ainda classificar a doença quanto aos seus aspectos morfológicos e monitorizar a sua actividade– doença quiescente vs doença activa – o que determina o modo de actuação médica, espacialmente no que se refere ao tratamento. Na Colite Ulcerosa, que tem um envolvimento exclusivo do cólon, a classificação morfológica faz-se quanto à sua extensão neste segmento do intestino: diferencia-se entre colites distais – proctite e proctossigmoidite - e colites extensas – colite esquerda, sub-total e total. Na Doença de Crohn a classificação morfológica da doença é mais complexa, devido à sua maior heterogeneidade, e baseia-se na Classificação de Viena que entra em conta com 3 factores: idade de inicio da doença (antes 40 anos, após 40 anos); local de envolvimento do tubo digestivo (cólica, ileo-cólica, intestino delgado); forma de envolvimento da doença(penetrante, estenosante e inflamatória). A avalição da actividade da doença faz-se pelo uso de índices clinico-laboratoriais, com a quantificação de sinais e sintomas (nº de dejecções, temperatura, taquicardia, etc.) e parâmetros laboratoriais (hemoglobina, VS, albumina etc.). Na Colite Ulcerosa o índice mais utilizado é o Truelove-Witts e na Doença de Crohn são utilizados o CDAI (Crohn’s Disease Activity Index) – mais complexo- ou índice de Harvey-Bradshaw – mais simplificado.
As opções terapêuticas dependem, como foi dito acima, dos aspectos morfológicos da doença e da sua actividade clínica. De uma forma geral, esta abordagem é dividida em terapêutica de ataque ou de indução de remissão e em terapêutica de manutenção da remissão.
A terapêutica de indução da remissão assenta, primordialmente, no uso de 5-ASA (Mesalazina) e corticosteroides, tópicos ou sistémicos. Na Colite Ulcerosa, estes agentes devem ser usados em formulções tópicas (enemas) nas suas formas distais, pela sua maior biodisponibilidade local, e em formulação oral nas colites extensas. No caso de crises ligeiras e moderadas, deve-se optar pela Mesalazina em primeira linha a que se junta um corticoide quando não ocorre resposta clínica. Nas crises severas existe indicação para iniciar desde logo corticoide oral (associado ou não a Mesalazina), devendo ser passado a corticoide endovenoso se não houver resposta clínica. Na Doença de Crohn a estratégia terapêutica é semelhante: nas formas ligeiras a moderadas está indicada a Mesalazina oral e nas crises severas está indicado o uso de corticoides (oral ou endovenoso). Podem existir algumas alternativa de tratamento conforme as caracteristicas morfológicas da doença: nos casos de doença ileal ou ileo-cólica, do tipo inflamatório, pode-se optar pelo Budesonido, um corticoide de baixa absorção sistémica; nos casos de doença cólica, do tipo penetrante, pode-se optar por antibioterpia dirigida à Doença de Crohn (Metronidazole).
Os doentes, nos quais não é conseguida a remissão dos sintomas com terapêutica corticoide, definem-se como corticorefractários (5 a 10% ) e a sua abordagem depende do tipo de doença a da maneira como os sintomas são tolerados. Caso haja boa tolerância dos sintomas e fraca repercussão no estado geral, deve-se optar pela introdução de um agente imunossupressor – por expl. a Azatioprina - para potenciar o efeito do corticoide, permitir a indução da remissão e actuar como num doente corticodependente. Se os sintomas são graves e mal tolerados, existe indicação para o uso ciclosporina ev (na Colite Ulcerosa), Infliximab (na Doença de Crohn) ou para terapêutica cirúrgica.
A terapêutica de manutenção da remissão inicia-se na sequência da obtenção da remissão sintomática. Quando a remissão é obtida apenas com Mesalazina, esta deve ser continuada na mesma dosagem necessária para obter a remissão.Quando a indução é induzida por corticoides estes devem ser descontinuados, num prazo de 2 a 3 meses após a remissão clínica, pois não trazem benefícios na manutenção da remissão e são causadores de efeitos secundários relevantes. Se o doente consegue descontinuar corticoides é mantido com Mesalazina oral, na dose de 2 a 3 gr/dia, como terapêutica de manutenção. É uma terapêutica segura a longo prazo e não carece de nenhuma vigilância clínica e laboratorail relevante. Se no decurso da descontinuação de corticoides ocorre recidiva sintomática, ou se o doente apresenta duas crises agudas que obrigam a tratamento corticoide no decurso de 1 ano, é definido como corticodependente (20 a 30%). Nestes casos deve ser iniciado um agente imunossupressor (Azatioprina ou Metotrexato) com o objectivo de garantir a manutenção de remissão e permitir a descontinuação de corticoides. Estes agentes são seguros na terapêutica a longo prazo mas, pelo risco de leucopénia e imunodepressão, carecem de vigilância clínica e laboratorial apropriada.
A recente investigação no campo dos agentes agentes biológicos – anticorpos bloquedores de citoquinas pró-inflamatórias específicas - veio permitir novas opções terapêuticas. O Infliximab – anticorpo anti-TNF alfa, tem sido útil nos doentes com doença de Crohn corticorefractária ou que persistem corticodependentes após imunossupressor. Em infusões regulares (8/8 semanas), permite a indução e manutenção da remissão clínica, e é o único fármaco que mostrou induzir uma remissão histológica completa e conseguiu modificar o curso natural da doença.

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Leram tudo? :)

domingo, agosto 21, 2005

 

A força da experiência

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A consulta estava mesmo a acabar, finalmente... faltava só um ou dois doentes. Tinha sido uma tarde longa e penosa, como é habitual após as férias: não sei se é por falta de ritmo, se é da moleza do calor ou se é por marcarem mais doentes, a consulta parece que se arrasta infindavelmente. Parece, não... arrasta-se mesmo!
A consulta estava mesmo quase a acabar quando uma enfermeira bateu à porta, entrou e disse - A doutora Rute pede para ir à sala da endoscopia... - e eu lá fui. A Rute é uma colega mais nova que, nesse dia, estava de serviço à urgência. Se me tinha chamado, é porque estava com alguma dificuldade na endoscopia - talvez uma hemorragia digestiva - e, enquanto no hospital, damos sempre uma ajuda quando solicitada.
Afinal a situação não era muito grave, nem emergente... era um impacto alimentar, ou seja, um rolhão de comida preso no esófago, que nem vai para baixo nem para cima, e impede o doente de engolir. Isto acontece por diversos motivos mas, mais comumente, aparece em idosos que mastigam com mais dificuldade, que engolem uns bocados de comida maiores que o habitual e que, muitas vezes, já têm algum pequeno aperto no esófago. O bocado de comida pára, outros juntam-se-lhe e, com líquido e saliva, formam um bloco espesso que só sai com alguma ajuda.
Este doente era novo mas a situação estava dificil de resolver. Para além da sua pouca colaboração - arrotava e estrebuchava constantemente - a massa alimentar apresentava um quantidade surprendente de liquido e um elevado número de umas coisinhas castanhas que pareciam caroços de azeitona. O líquido não se conseguia aspirar - entupia o endoscópio - e dificultava a visão. Os "caroços de azeitona" atrapalhavam os movimentos da pinça que tentava desfazer e remover a massa alimentar.
Eu, baseado na experiência nestas situações, lá ia dando algumas indicações à Rute... "faz assim, tenta por ali, abre a pinça assado"... É quase sempre assim e não existe uma maneira standard de remover um impacto alimentar: vai-se tentando, com diferentes pinças, de diferentes maneiras, até desentupir a coisa. Mas, neste caso, nada... a comida continuva ali, impávida, e o doente ia ficando mais agitado. Até que a Rute disse - Queres tu tentar? - É também habitual: após o mais novo não conseguir, vai o mais velho... e tem que conseguir!
Calmamente, calcei as luvas, peguei no endoscópio, olhei o panorama e pedi a pinça "tal". Nisto, o doente estrebucha com mais força e, com um ploff! quase audível, a comida cai para o estômago. Já está! - disse eu, perante o espanto da Rute. É assim, a experiência conta muito... nem foi preciso fazer nada: o impacto assustou-se e fugiu para o estômago, sabia que não lhe ia dar hipóteses!
E voltei à consulta que estava quase a acabar... faltava só um doente.

segunda-feira, agosto 15, 2005

 

De serviço (II)

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Calhou, este fim de semana, ler uma entrevista de Sobrinho Simões onde falou de médicos, doenças e doentes. Sobre estes últimos, apontou com clareza um defeito, com o qual concordo plenamente: a extraordinária falta de objectividade e assertividade do doente português.
Um doente anglo-saxónico é capaz de explicar, rápida e succintamente, um determinado sintoma. Um doente português, não! Exemplificando: um inglês, sobre uma dor abdominal, é capaz de dizer exactamente o local onde doi, o tipo de dor que é (aperto, facada, moinha...), durante quanto tempo doi e o que faz aliviar a dor. O doente português não é capaz de fazer isto... Quando perguntamos onde doi, responde que é “em todo o lado”; quando perguntamos como é a dor, diz que é “assim...”; quando queremos saber quando é que doi, responde que “sempre”; quando perguntamos o que é faz aliviar a dor, diz que “nada”.
Mais que um problema cultural, é um problema educacional: isto pode-se ensinar na escola.... a ter uma maneira de pensar mais “científica”.

sábado, agosto 13, 2005

 

De serviço (I)

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Sábado de manhã, um banco calmo como é habitual... pouco (ou nada) para fazer. De repente, lá fora, soa o desespero... gritos lacinantes e choro convulsivo. Morreu um cigano!
Quando é que nós deixámos de manifestar assim a nossa dor?

PP: vou começar a organizar uma nova secção: Blogs do Algarve.

quinta-feira, agosto 11, 2005

 

Como é que se diz a alguém que pode morrer? (II)

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- Ora sente-se...
E ele sentou-se.
O gabinete de consulta estava fresco e silencioso, cheio de uma calma penumbra. Depois do calor e do bulício da sala de relatórios, aquele gabinete parecia uma espécie de santuário. Fechei a porta e também me sentei. Ele já não escondia as lágrimas e eu não sabia bem o que dizer: apetecia-me só ficar ali quieto, como que escondido, sem dizer ou fazer absolutamente nada.
- Vá, acalme-se… aqui podemos falar mais à vontade, com mais calma.
-…
- Não há razão para ficar assim!
- Já sabia… Já sabia! Esta dor aqui há tanto tempo sem se ir embora… já devia ter visto isto!
- …
- Mas nunca se está à espera…
"Cá está a recriminação!" Porque é que existe sempre a falsa sensação de que se podia, ou devia, ter feito algo no passado que evitasse o presente.
- Está bem, isso agora não é importante… Mas não pense que é tarde demais porque não é. Nunca é tarde demais!
- Ora, doutor...
- Estou a ser sincero… não há nenhum atraso!
- É um cancro, não é?
Ao dizer isto olhava assustado para baixo, como se não quisesse ouvir a resposta. "Quer ouvir: não, não é!" Apesar de já o saber, faltava ouvir a palavra que o confirmava… Como se a ausência da palavra que tanto assusta - que funciona como uma condenação - permitisse uma última esperança.
- Sim, tudo indica que sim… mas só o resultado da biopsia o vai confirmar.
- …
- Agora o importante é fazer os exames necessários e o tratamento correcto… Um tratamento para curar a doença, para você ficar completamente bem.
- Diga-me a verdade... posso morrer?
Voltei a ficar sem palavras.... “Que porra, pode-se dizer a alguém que mal conhecemos que sim, que pode morrer?”
- ...
- Nem há três meses tive uma enorme alegria neste Hospital...
- Então?
- Nasceram-me as minhas duas filhas... Gémeas!
"Fogo..." Voltou a olhar para baixo assustado, voltaram a soltar-se-lhe as lágrimas.
- Ora... não me diga que está a pensar que não as vai ver crescer?
- ...
“Não, definitivamente não lhe consigo dizer que pode morrer.”
- Não, acho que não vai morrer!
- Ainda bem!

E de repente, como que por magia, toda a tensão passou. Expliquei-lhe, calmamente, os passos que se seguiam, os exames que ia realizar e o que nos propunhamos a fazer na cirurgia. Duas semanas mais tarde, fui visita-lo ao Serviço de Cirurgia: a operação correu bem e todo o tumor foi removido. Estava sorridente e confiante e conversámos de tudo um pouco. Mostrou-me as fotografias das filhas.
Actualmente continua bem, a fazer quimioterapia adjuvante.
Sim, acho que não vai morrer!

PP: Eu sei que são reles desculpas mas os bancos são muitos e o computador de casa pifou!

quinta-feira, agosto 04, 2005

 

Nota da Gerência

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Como já devem ter reparado, este blog sofreu uma interrupção abrupta. Pois, meteram-se as motas pelo meio e nem tive tempo para avisar que ia de férias: após alguns passeios por terras de Espanha, pelo Nordeste Alentejano e de uma investida ao Barrocal - 1º Encontro de Bloggers do Algarve - voltei à base.
Assim, aceitem as minhas desculpas pela interrupção, a programação segue dentro de momentos. Juro!

PP: O conto vai ser concuido, brevemente. Há que esperar, ainda está a decorrer!