quarta-feira, setembro 28, 2005

 

Um pequeno aparte

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"Feliz foi o Ali Babá: não nasceu em Portugal e só conheceu 40 ladrões."

Mensagem recebida, do éter, a propósito!

domingo, setembro 18, 2005

 

De Serviço (V)

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Domingo à noite. Terminei o banco e vou voltar para casa.
A tarde pouco mais trouxe... realço a dona L, 53 anos, um metro e cinquenta, fácies sui-géneris, hábitos alcoólicos muito abundantes e referênciada por hematemeses (vómitos de sangue). Apresentava-se algo agitada, hiperreactiva e com tremores grosseiros dos membros superiores, a prenunciar um síndrome de abstinência. Tinha os dedos dos pés mais sujos que alguma vez me foram dados a apreciar: ria-se, esperneava e dizia que "tinha comichão" enquanto era lavada. A endoscopia foi épica: apesar de meia fórmula de Midazolan, não parou um segundinho sequer enquanto realizámos a esclerose de varizes esofágicas.
Ficou na Urgência, está a ser transfundida e dorme que nem um anjo.

O Benfica ganhou... agora é que ninguém nos pára!

 

De Serviço (IV)

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Domingo de manhã. Depois de umas curtas férias, volto ao trabalho enquanto o resto do mundo descansa ou passeia.
A Urgência está na mesma, como a lesma: três doentes observados, até agora.
O senhor D, 88 anos, com demência senil e suspeita de um tumor no cólon. Acabei por o internar, para realizar colonoscopia. Não disse nada...
A dona A, 85 anos, em status pós-AVC e rectorragias desde ontem. Tem um enorme fecaloma no recto que se vai tentar remover. Não disse nada...
O senhor J, 79 anos, em estado estuporoso não esclarecido, com febre e pequeno episódio de hemorragia digestiva. Aguarda melhor avaliação por Medicina Interna. Também não disse nada...

Espero, ansiosamente, pela tarde!

quinta-feira, setembro 08, 2005

 

A meio de uma manhã

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Eram onze e meia da manhã, mais ou menos, quando entrei na sala. Notava-se a penumbra e o bulício habitual de uma sala de endoscopia… B já estava a fazer o exame, uma colonoscopia. A doente, a dona Conceição, nos seus avançados setenta e muitos anos, repousava na marquesa alheada de tudo: a sedação já fizera o seu efeito.
- Olá… Bom dia!
- Bom dia
- Bom dia… tudo bem?
- Ora, está tudo bem… e o exame?
- É a dona Conceição… tem uma anemia ferropénica… é para ver se não há nada no cólon direito.
- Ok… falta muito?
- Ainda… um bocadinho.
- Doutor… quer pôr um bocadinho de oxigénio?
- Sim, é melhor… ponha a dois litros!
- …
- Bem, ando a terrível a dormir… acordo cheio de dores nas costas!
- Ahhh, eu não. Durmo sempre bem!
- Pois, hoje foi demais… parecia-me que alguém tinha andado a noite inteira a pular em cima das costas!
- Eh! Eh!… isso é da idade.
- Ou do colchão…
- Ora, mas é por fases… Se calhar, daqui a duas semanas, já acordo fino e fresco que nem uma alface
- Acho que é mesmo da idade… quem se queixa muito disso é o meu pai!
Ora, não me lixes!
- Não percebo!
- Não há nada como dormir bem, isso é verdade!
- Dizem que isso tem a ver com o ressonar, com a apneia do sono… Faz-nos acordar cansados.
- Sim, é verdade…
- Ó E, vamos lá vira-la para decúbito dorsal…
Já devia estar quase: quando se vira o doente para decúbito dorsal estamos próximos do ângulo hepático. Se a manobre corre bem, e com a rectificação do aparelho, chega-se ao cego em menos de cinco minutos.
- D, ajude lá a virar a senhora!
- Dona Conceição!… Dona Conceição!… Vire-se lá de barriga para cima.
- Está bem chumbada…
- Sim, mas agora já estava a reagir um bocadinho!
- Dá-lhe mais…. As tensões estão boas, a oximetria também!
- Ok… E, mais um centimêtro!
- Vai já!
- …
- E o que é que te parece o Benfica?
- Sei lá… pior que o ano passado não há~de estar, não?
- Pois, pior não…
- Lá vem o futebol!
- Sim, e não é bom?
- Não!
- Não liguem… o que é que achas?
- Mas cada vez me interesso menos… pelo futebol!
- Ahhh, pois…. Só gostam quando ganham vocês, quando ganha o meu Porto já não é bom…
- Vamos ver este ano estou com uma fezada… com o velho italiano vamos ganhar!
- Juízo, talvez
- Talvez
- Olha, não é o cego, a válvula?
- Sim, parece…
- …
- Está aqui a luz!
- Ok… está feito!
Sim estava feita a colonoscopia. Não tinha “nada” no cólon e nós continuavamos sem saber porque é que tinha a anemia.
- Sim, não tem nada… Lá temos que ver o delgado!
- Pois…
- Tira rápido… ainda temos mais duas colonoscopias.
- Calma…
- E este fim de semana, o que é que se faz?
- Eu estou de serviço
- Mais um? Ena… o… não te perdoa um!
- Eh! Eh!
- Pois é… já tinha reparado.
- Eu tenho cá a minha irmã… e os meus sobrinho… ohhh!
- E eu vou para a ilha do Farol!
- Boa… um fim de semana no Farol é porreiro!
- Sopas e descanso… Praia e conquilha
- Esta ano ainda não fui lá
- Ahhh… eu fui quase todos os fim de semana!
- Barquinho… Casa na ilha… Vive-se bem!
- Pois…
- E eu de banco, que treta!
- Olha lá, quando é que é aquela reunião de fígado em Sesimbra?
- Ahhh!
- …?
- Ela não está a respirar!!
- O quê?
O monitor não tinha apitado – estava em silêncio – e a oximetria estava abaixo de 50. Olhamos para todos para ela, segundos que não pareciam passar, e não respirava mesmo!
- Merda!
- Dona Conceição!… Dona Conceição!… Respire!
- Aumenta o óxigénio… Prepare um Anexte
- Estica-lhe o pescoço… Onde está o ambu?
- Plaff! Plaff! – palmadas na cara – Respire, dona Conceição!
- Entuba-se?
- Calma, o pulso e tensão ainda estão bem… O Anexate?
- Já está!
- Plaff! Plaff! – palmadas na cara – Respire, dona Conceição!
- …
E de repente, a D. Conceição bocejou e começou a respiar, devagarinho começou a respirar!
- Já está…
- …
- Dona Conceição…. Acorde, está bem!
- Já terminei…
- Dona Conceição!
- …
- Ahhh…
- Dona Conceição, como se sente?
- Ahhh, Doutor… correu bem… o exame?
- Sim, dona Conceição… Correu tudo bem!

quinta-feira, setembro 01, 2005

 

De Serviço (III)

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Estou muito triste, desanimado mesmo... esta madrugada morreu o senhor D.
Tinha só 46 anos, mulher e filhos para criar. Desde há uns dias que o sorriso se tinha apagado e as palavras escasseavam. A cirrose ia-se agravando e a medicação pouco fazia.
Mas... não era preciso isto!