terça-feira, janeiro 30, 2007

 

Voltas e mais voltas!

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O cólon, quando não toma o jeito, não tem volta a dar. Pode-se dizer que, por mais voltas que se deêm, não conseguimos dar a volta que queremos.
- Vamos lá voltar o doente...
E volta tudo ao mesmo!
- Temos que voltar ao princípio...
E a má volta continua!
- Volte lá a carregar aí...
Até que voltamos as costas!
- Vamos dar meia volta...
E o doente volta a si!
- Chegou ao fim, doutor?
- Quase...
- Mas tenho que cá voltar?
- Olhe, descanse um pouco... daqui a um bocadinho já voltamos a falar!



sábado, janeiro 27, 2007

 

Quando dou por aí umas voltas...

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... Gosto sempre de passar por lá, por isto ou por aquilo.

quinta-feira, janeiro 25, 2007

 

Eu não lhe disse?

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Fui beber um café a bar, logo de manhãzinha, e depois passei pela urgência para falar com a Paula, sobre qualquer coisa de que já não me lembro.
Quando ia, reparei naquela cara deitada numa maca e pareceu-me conhecê-la. Sim, quase de certeza que conhecia aquela cara mas, deitada numa maca, a comer o pequeno-almoço, fiquei sem saber a quem pertencia. Quando vinha, olhou para mim, fixou-me bem, sorriu e tive a certeza.
- Bom dia, doutor!
- Bom dia…
- Eu não lhe dizia?
- …
- Que tinha que ser internado!
Foi aí que se fez luz, era o senhor Aquiles. Estava muito mais magro, de cabelo mais branco, desbarbeado e tremiam-lhe as mão deitado na maca. Estava muito diferente, quase impossível de reconhecer. O senhor Aquiles andou na consulta, durante algum tempo, há dois ou três anos e só lá foi parar porque fui enganado - Não me queres ver um doente na tua consulta! – disse-me um dia um psiquiatra – Ele é um bocado hipocondríaco e eu acho que ele não tem nada… - continuou - … mas, se calhar, podia fazer alguns exames para ver se acalma. Não liguei muito e disse que sim. Parvo!
- Pois dizia…
- Estou aqui há dois dias… à espera de vaga!
- E porquê?
- Não vê? Estes tremores…
Estava na fila das macas dos doentes psiquiátricos, dos doentes que aguardam qualquer coisa que ninguém sabe bem o que é. Voltei à saleta do pessoal e perguntei à Paula pelo senhor Aquiles – Não sei, não estou com os homens! – respondeu – Pergunta à Eva. Perguntei à Eva que disse – Não sei bem… É da psiquiatria… está á espera de qualquer coisa! Confirmava-se.
- Então as melhoras, senhor Aquiles!
- Obrigado doutor… gostei de vê-lo!
- Eu também.
- Eu bem lhe disse que precisava de ser internado.

O senhor Aquiles não era um bocado hipocondríaco, todo ele era hipocondria. Logo na primeira consulta arrependi-me do meu assentimento despreocupado ao pedido do psiquiatra [na segunda consulta telefonei-lhe a pedir socorro] e comecei a maldizer a minha vida.
De entre as muitas doenças que tinha, só o deixei queixar-se de três ou quatro: as que tinham mais relação com a tripa e anexos. Das outras, proibi-o terminantemente de falar.
Tinha SIDA. Uma dia tinha ido de propósito a Lisboa para conviver com uma menina e, ainda no caminho de volta, já se tinha arrependido. Apareceu-lhe uma mancha na virilha, uma grande fraqueza e teve a certeza: tinha SIDA. Separou-se da mulher e foi aos médicos. Fez duas ou três serologias que foram negativas. Cravou um WesternBlot, que foi negativo. Mas o WesternBlot pode ser falso negativo em x%. Tenho SIDA! – dizia-me. Na altura queixava-se de uns ardores não sei onde e pediu-me mais um teste. Disse-lhe que não.
Tinha uma greta na língua. De facto, tinha… o sulco mediano da língua era profundo e esboçava uma laceração. Mas, dizia ele, aumentava de dia para dia, de mês para mês e ia ficar com a língua bifurcada. Já tinha feito análise, exames, biopsias, tratamento e nada, só cada vez pior. Durante o tempo que lá andou, mostrou-me todas as vezes a língua - Está a ver? Está quase a separar-se! - e pareceu-me sempre na mesma. E pior, tinha amargos de boca, saliva ácida e pústulas na garganta.
Tinha os intestinos putrefactos. Estavam putrefactos desde que tinha SIDA e sabia-o pelos barulhos que faziam, pelos cheiros que exalavam [pela boca e ânus, claro!] e pelas diarreias que tinha. Também já tinha feito exames, na clínica de St. Luzia – Anestesiaram-me durante dois dias e fizeram-me todos os exames! Não tinham mostrado nada mas era impossível… com certeza que não tinham sido os exames certos. Pediu-me para lhe fazer outro estudo completo do aparelho digestivo e eu disse-lhe que não, que só lhe pedia umas análises.
Tinha incompetência do ânus. Claro que não havia nenhuma incontinência fecal ou de gases, nem a mínima escorrência nocturna, era só o tal cheiro dos intestinos putrefactos que não parava. Fiz-lhe um toque, uma anuscopia e disse-lhe que estava tudo bem, que o esfíncter me parecia estar a funcionar em pleno. Não acreditou. Sugeri que fosse ao Porto fazer uma manometria, mas não foi porque estava muito doente.
Um dia declarei-me incapaz – Senhor Aquiles, não sei o que tem nem sou capaz de tratá-lo! - Ele não se admirou e perguntou que colega é que eu lhe recomendava – Acho que o melhor é voltar ao psiquiatra!

Confesso que, depois de me despedir, tive uma enorme vontade de lhe perguntar:
- E então senhor Aquiles, a língua já se separou?

segunda-feira, janeiro 22, 2007

 

Da Esmeralda (II)

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Ora bem, cá volto eu ao caso da Esmeralda perdida.
Por diversas razões, muito diversas mesmo, tenho-me interessado bastante por este caso e tenho procurado manter-me informado, para além do habitual ruído de fundo. Alguns factos são do conhecimento público e até já os resumi aqui. Hoje só estou aqui para algumas considerações... Poucas!

O grande erro de Baltazar foi não ter assumido a paternidade quando o devia ter feito. Um erro terrível, enorme. Mas imperdoável? Não, eu acho que não, que não é imperdoável, e todos os seus passos para assumir a tutela da filha – iniciados quando ela tinha 1 ano – são legítimos.
Não creio, como é passado pelos média e assumido pela opinião pública, que a tenha abandonado, nem que o seu erro inicial lhe tenha automaticamente feito perder os “direitos paternais”. Também não me parece que haja, claramente, uma procura de beneficio material ou de notoriedade pública. O processo já corre há mais de três anos e, a não ser agora, essa questão nunca se colocou.

O casal Luís e Adelina têm naturais aspirações em continuar a ser “pais”. Amam a Esmeralda, com certeza, e durante todos estes anos deram-lhe tudo o que os pais dão a um filho: amor e protecção. No entanto, isto não lhes concede direitos especiais e cometeram muitas faltas durante todo o processo. Avançar com o pedido de adopção, quando já sabiam que o pai biológico pretendia a tutela, não me parece muito legítimo. Impedir o contacto da Esmeralda com os pais biológicos, durante todos estes anos, e mudar-lhe o nome, não é razoável. Sinceramente, parece-me que toda esta recusa em cumprir a sentença judicial revela mais preocupação com o seu “querer a criança” do com os naturais interesses desta.

Por fim, o que realmente é importante, o acautelar dos superiores interesses da Esmeralda. Julgo que a sentença de Julho de 2004 era justa a acautelava esses interesses: a esmeralda tinha dois anos e meio, poderia suportar [com sofrimento, é evidente] o afastamento dos “pais adoptivos” e estavam previstas medidas transitórias e de acompanhamento. Não era um arrancar abrupto e tinha toda a infância para viver, para criar as suas referências. Isto não foi feito…

Agora, com 5 anos, já é tudo diferente… O afastamento da família com que vive já não é só doloroso: é o corte com tudo o que ela conhece, é acabar com a Esmeralda que ela hoje é. Em troca de quê? Da estrita legalidade jurídica? Valerá a pena? Não sei, sinceramente… Acho que não se pode penalizar a criança para castigar os erros de muitos adultos.
Mas também sei que pactuar com o facto consumado é péssimo… E é isso que Luís e Adelina nos querem impor: aceitar o facto consumado que eles – só eles –criaram!

Só nos resta esperar que surja uma alma iluminada que promova uma decisão final sensata. Pelo barulho [e paixão] que por aí vai, não me parece!

sexta-feira, janeiro 19, 2007

 

A Crónica

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“Não há uma só linha em nenhum dos meus livros que não tenha a sua origem num facto real”. Gabriel Garcia Márquez, a propósito de Crónica de uma Morte Anunciada.

terça-feira, janeiro 16, 2007

 

Um pequeno milagre [ou os seis clips]

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Entrou na sala de endoscopia branca e fria, pequenina em cima da maca. Não falava nem gemia, não abria os olhos nem se mexia, só respirava. Entrou na sala de endoscopia quase morta. Parece-me até que, durante alguns instantes, morreu mesmo.
Tinha bem mais de oitenta anos e já a conheciamos: dois dias antes havia feito uma endoscopia - por hemorragia digestiva - que mostrou uma úlcera enorme, no estômago. O tratamento, feito na altura, não surtira muito efeito. Hoje tinha voltado a sangrar, e muito... muitíssimo. Iniciados os soros e transfusões, veio a cirurgia que disse o habitual "Epá... Com esta idade... Com este coração... E o rim já nas lonas... Se lá vamos, vai-se... Vocês não podem fazer qualquer coisa?"
Entrou na sala de endoscopia, branca e fria, e já dava muito pouco por ela. Acho que todos davamos pouquíssimo... Tinhamos decidido fazer qualquer coisa mas, quando entrou na sala de endoscopia, ainda não sabiamos bem o que iamos fazer.
Chegados ao estômago, lá estava ela, a úlcera gigantesca, com mais de 2 cêntimetros de diâmetro, na pequena curvatura alta, com vaso visível e hemorragia em toalha de elevado débito. Em volta, no resto do estômago, uma imenso mar vermelho dificultava as manobras.
- Injecta-se um bocado de adrenalina e metem-se uns clips!
A adrenalina pouco fez... Talvez tenha amainado um bocadinho a torrente.
- Embora... 1 clip!
O primeiro clip clipou ao lado do vaso... Hemorragia na mesma.
- Vá, outro clip!
O segundo clip resvalou e perdeu-se no mar.
- Merda! Dá-me outro... Ainda está viva?
- Sim, respira... mas tem sistólicas de sessenta
O terceiro clip clipou bem no vaso... Parece que vai parar mas continua a babar.
- Viram... Acho que vamos lá, isto vai parar! Mais um clip...
- Outro?
- Tenta abordar por cima, metê-lo mesmo junto a esse
O quarto clip clipou um bocado mal e ficou longe de mais... Ainda baba muito.
- Cacete, quase! Tenta tu agora...
- Vamos, outro clip!
O quinto clip foi ao sítio mas... escorregou e caiu. Parece que ficou pior, agora esguincha.
- Porra... Mais um!
- Mais um? Olha que já foram cinco!
- É o último....
O sexto clip acertou em cheio, clipou e ficou... A hemorragia parou.
- Vamos sair... Vamos ver se aguenta!
- Seis clips! Sabes quanto se gastou?
- Sei lá... mais de 600 contos, de certeza!
- Fogo, a velha está morta!
- Sim... mas pode ser que se aguente!
Saiu da sala de endoscopia branca e fria, minúscula naquela maca. Mal respirava, confesso que já não dava nada por ela.
Entrou na enfermaria, dois dias depois, mais arrebitada. Não tinha voltado a sangrar.
Foi para casa no fim da semana, imponente na cadeira de rodas. Sorria e dizia que não havia de lá voltar.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

 

Quando tudo está terminado

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Depois de termos acabado, depois de tudo estar terminado, fomos para a outra sala e sentámo-nos. Silenciosos.
Olhou-me bem nos olhos e disse:
- Então.., vamos conversar a sério?
Olhei-o bem nos olhos e devolvi:
- Sim, claro que vamos!
Sem pestanejar, continuou:
- O que é que eu tenho, afinal?
Pestanejei e respondi-lhe:
- Tem um tumor maligno no esófago… Já está muito avançado, percebe?
Nem vacilou, a olhar-me bem nos olhos:
- Eu sabia.., estou lixado!
Vacilei e baixei o olhar. Fingi que brincava com a tampa da caneta.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

 

Da Esmeralda

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Calhou, por calhar, entrar numa pequena (pequeníssima) polémica. Isto por causa da Esmeralda!
Esmeralda é o nome daquela miúda que era para ser adoptada, mas que entretanto não foi, que agora o pai biológico quer de volta e que o pai adoptivo foi preso, acusado de sequestro.
Um assunto com muito para falar…
Em primeiro lugar, mostra bem a habitual ineficácia da máquina administrativo-judicial portuguesa. O caso parece arrastar-se desde 2004 (ou até desde 2003) com meias-decisões, boas decisões, más decisões e contra-decisões, até que finalmente não se toma nenhuma decisão ou qualquer uma que se tome é tida por injusta por uma das partes.
Em segundo lugar, mostra – quanto a mim - que a lei portuguesa protege excessivamente a poder parental dos pais biológicos. Sim, excessivamente, em casos de maus tratos óbvios ou em caso de abandono e negligência, e os resultados disto vemo-los todos os dias, ao pé de nós ou em qualquer jornal, numa qualquer Susana morta em Monção. Sabiam, por exemplo, que no caso de uma criança institucionalizada – por qualquer razão – basta uma breve visita de um pai de seis em seis meses para manter o poder paternal e impedir a adopção?
[Bem, não sei… No fundo, não sei! No fim de contas, qualquer lei deve proteger fortemente os direitos paternais porque ainda é a melhor forma de proteger a criança. O que pode acontecer é que, em casos em que os poderes paternais deviam ser suspensos à luz da lei, por má interpretação ou por má execução, as crianças continuam a ser entregues aos não-cuidados de péssimos pais biológicos].

Por fim, o caso concreto. A Esmeralda nasceu há cinco anos como resultado de uma breve relação entre Baltazar e Aidina. O Baltazar quando soube da gravidez, assobiou para o ar e disse que não sabia quem era o pai. A Aidina teve a criança, ao fim de três meses entregou-a a um casal com intuito de adopção e desapareceu de circulação(?). Por indicação da mãe ou por necessidade para o processo de adopção, o Baltazar teve que fazer [obrigado] um teste de paternidade, que a confirmou. Foi a partir daqui que a coisa começou a entortar. O Baltazar encheu-se de brios, diz que se afeiçoou à filha e requereu o poder paternal. Os futuros pais adoptivos não gostaram e impediram contactos da criança com o pai biológico. Começaram as decisões judiciais, os recursos e os sucessivos atrasos: desde 2004 que existe uma decisão de entrega da criança ao pai biológico, recorrida e não cumprida pelos “pais adoptivos". Agora, o “pai adoptivo” foi preso, acusado de sequestro, e o “pai biológico” pede 60.000 € à guisa de danos morais.
Que pensar? Que juízo fazer?
Para mim, é-me difícil!
O Baltazar parece egoísta e irresponsável na sua actual obstinação, e foi-o no passado ao só se interessar na filha “tardiamente”, lançando no ar a suspeição de interesse monetário agora avolumada pelo pedido de indemnização. É óbvio que a "mudança forçada de pai" não vai beneficiar, em nada, a Esmeralda.
Os eventuais pais adoptivos não provaram grande coisa ao recusarem sistematicamente os contactos com o pai biológico. A sua desobediência a uma ordem de tribunal é difícil de aceitar. É óbvio que decidir apenas com base na idade actual da criança é aceitar a política do facto consumado, com todos os seus riscos.
É óbvio que a mãe se cagou para tudo isto.
É óbvio que se tivesse sido produzida, e executada, uma decisão há três anos, tudo isto seria evitado.

E agora, a polémica. Uma jornalista publicou algumas peças jornalísticas sobre o assunto que foram comentadas num blog. Ao ler estas peças, que entendi essencialmente como notícias, achei que a jornalista – de forma algo camuflada – fez sobressair a justeza da posição dos pais adoptivos e desvalorizou [até ridicularizou] as posições do pai biológico. Disse isso e ela, a jornalista, caiu-me em cima…
Enfim, é claro que o jornalista tem direito a uma opinião. Mas ao escrever uma peça, uma notícia, a sua posição deve ser neutra. A não ser que seja um artigo de opinião.
Para que julguem por vós, aqui vos deixo as duas peças.

[Adenda em 12-01-06: Após mais algumas leituras, e uma troca de mails, já não sou tão veêmente. É que os artigos podem mostrar a verdadeira natureza do artista!]

domingo, janeiro 07, 2007

 

O Homem

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"Não existindo já os deuses e não existindo ainda Cristo, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existia o homem".
Gustave Flaubert citado por Marguerite Yourcenar, a propósito de As Memórias de Adriano.

sábado, janeiro 06, 2007

 

O João e o Zé

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Há quatro ou cinco dias ouvi, na televisão, um discurso sobre a quantidade de crianças que necessitam de ser institucionalizada devido a problemas sociais. Não pude deixar de sorrir, triste.

Faz uns anos que conheci, superficialmente, o caso do João Comédia. O João era um miúdo cigano que nasceu com Síndrome de Down – vulgo mongolóide – e que, por diversos problemas de saúde associados, permaneceu durante algumas semanas no Hospital. A família, das mais pobres das pobres ciganas, e ainda semi-nómada, partiu uma noite e nunca mais se soube dela. O João Comédia melhorou, ficou bem no seu Síndrome de Down e… ficou no hospital – porque não existe nenhuma instituição que receba crianças doentes. Vieram as Comissões de Menores, as decisões dos Tribunais e o João Comédia continuou no… hospital - porque não existe nenhuma instituição que receba crianças doentes! Assim se passaram quase três anos até que um dia, a propósito de um outro miúdo doente, um casal – estrangeiro residente, diga-se - passou lá pelo Serviço, reparou no João, gostou do João e, por fim, adoptou o João. Passado um ou dois anos apareceu, de novo, um casal no hospital para visitar um doente. Vinha com eles um rapazinho, bonito e sorridente, com uma farda de colégio fino. Era mongolóide e conhecia quase toda a gente. Era o João Comédia.

Agora está lá no serviço outra criança cigana, primo do João – podemos chamar-lhe Zé Paródia. O Zé nasceu com uma doença de Byler, uma doença hereditária que provoca colestase [acumulação de bílis], que progride para cirrose hepática, o que obriga a um transplante hepático por volta dos sete ou oito anos. A família do Zé é ainda mais miserável que a do João, vive numas barracas ali na estrada que sobe para a serra, e não tem possibilidades nenhumas de o ter em casa: devido à colestase e à imunodeficiência associada, o Zé Paródia necessita de medicação contínua e está sujeito a muitas infecções. Assim, praticamente desde que nasceu há cinco anos, o Zé vive no hospital… Claro que já opinaram as Comissões, já deliberaram os Tribunais, já se pronunciaram as entidades mas o Zé Paródia lá continua no hospital, porque… não existe nenhuma instituição que receba crianças doentes! Agora, vai todos os dias de manhã para o jardim de infância e, à tarde, volta para a única casa que conhece, o hospital. E para o ano há-de ir para a escola, que é mesmo ali ao lado.

E sorrio mais quando me lembro daquele miúdo inglês que um dia ficou abandonado no aeroporto. Tinha uma fenda palatina, precisou de operações e foi alvo de muita atenção jornalística. Foi logo, logo para a Instituição do Resguardo porque, lembrem-se, não existem instituições que recebam crianças doentes.

terça-feira, janeiro 02, 2007

 

Custa-me tanto vê-lo assim

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Custa-me vê-lo assim.
Pouco sai, passa os dias sentado à mesa, perto da televisão, preso aquele atilho que vem do tecto, que sai do candeeiro, como se fosse uma rédea curta que o mantém preso aquela mesa. Quando sai, muito pouco, volta rapidamente… tão rápido quanto consegue subir os três andares, a parar em todos os patamares, ofegante, suado, mas ansioso por chegar, chegar cá a cima ao atilho, ao tubinho do oxigénio que desce do candeeiro e o mantém preso aquela mesa.
Custa-me vê-lo assim, porque o conheci antes.
Quando era mais novo, menos doente. Quando falava de alto e pensava que mandava no mundo, em todos nós. Quando só saía e nunca estava em casa, quando não ouvia ninguém nem via televisão. Quando nunca deixou de beber, nem de fumar três maços de tabaco, sentindo-se imortal mesmo quando já se cansava a subir os três andares.
Custa-me vê-lo assim, preso naquela mesa.
Com o tubo enfiado no nariz, em volta da cabeça, qual açaime e rédea curta. Sempre com o oxigénio a correr, sempre preocupado que o oxigénio não corra, sempre a tomar medicamentos, a sorver as bombas como quem sorve um bocado de vida, só mais um bocadinho. Sentado, ali na mesa, sempre a ver televisão, as novelas, sempre preocupado com os enredos.
Custa-me vê-lo assim, a ver novelas.
Sentado na mesa, preso ao tecto, preso ao oxigénio, a resmungar ou a chorar com as novelas. E ainda a querer mandar, já só na sala, só na mesa, só no oxigénio, e sem poder. Sempre sentado na mesa, a sorver o oxigénio e a engolir a comida, quase sempre a comer, a pedir mais comida. E fumar, claro, sempre a fumar. Menos que dantes, talvez dois maços, e a pedir-me mais um cigarro.
Custa-me vê-lo assim, a morrer.
A morrer devagarinho, a matar-se devagarinho. A sorver o oxigénio, a fumar mais um cigarrinho. Sentado à mesa, a resmungar com a novela, a pedir mais comida. Sentado à mesa, com medo. Com medo de morrer.
Custa-me tanto vê-lo assim.