sábado, fevereiro 24, 2007

 

Ecos do passado

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A Sila já foi outra vez operada. Como tinha dito o cirurgião, tecnicamente foi um êxito. Só que - há sempre um qualquer só que - as complicações teimam em não a deixar sossegada: desta vez formou-se um "pequeno" abcesso subfrénico. Foi drenado pouco depois da cirurgia mas refez e, na quinta-feira passada, lá voltou para nova drenagem.
Ela está óptima e eu penso que a doença de Crohn está bem controlada, que este abcesso não tem relação com a doença - é sim uma complicação de um pós-operatório "banal" - mas, agora, ela é que me pisca o olho e diz: "Olhe que isto vai lá, doutor!"

Entretanto, ontem estive de urgência e chamaram-me para o Zé Paródia. O Zé continua na mesma, a viver no Hospital... Na mesma, não é bem assim: ontem de madrugada apareceu com hematemeses - ou com epistáxis, ou com as duas ao mesmo tempo que não se percebeu bem! - e as análises revelavam uma anemia importante. Como a doença dele pode levar ao aparecimento de cirrose hepática pensámos que a causa da hemorragia podiam ser varizes no esófago e decidimos realizar uma endoscopia.
Quando chegou cá em baixo, à sala da endoscopia, o Zé vinha bastante aflito. A colocação do catéter venoso para a medicação e transfusão já tinha sido difícil e ele só perguntava - Vai doer? E nós diziamos que não, que estivesse descansado, que não ia custar nada... Mas, enquanto iamos preparando as coisas e esperávamos pelo anestesista, ele não parava de se remexer na maca e, de minuto a minuto, arregalava os olhos e atirava de novo - Isto vai doer não vai?
E não doeu nada. O propofol é milagroso, o Zé dormiu, até ressonou e a endoscopia fez-se sem espinhas. Felizmente não detectámos nada no esófago nem no estômago e concluimos que tudo não passava de epistáxis [hemorragias nasais] mais abundantes que o habitual.
Já na pediatria, ao acordar, sorriu e disse - Ora cá estou eu de volta! . Meia enfermaria, de volta dele, sorriu também - E trataram-te bem, Zé... Custou muito? - perguntaram - Sei lá, estive sempre a dormir! - respondeu seguro.

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

 

O Carniceiro Extirpador

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Às vezes somos apanhados, assim como que meio desprevenidos, e descobrimos as nossas pequenas fragilidades. Descobrimos que, por mais anos que passem, a imunidade nunca é total e que a couraça tem algumas brechas.
Quando li a carta, deu-me até vontade de rir. Sabia que, por isto ou aquilo, ele não tinha gostado de mim, não nos tinhamos entendido e ele até tinha passado a ser seguido noutro hospital, já lá vão mais de seis anos. É normal, acho...
Mas depois, ao lembrar-me da passagem " se estou vivo posso agradecer... a que eu fosse acompanhado por um verdadeiro especialista e por eu ter tido a coragem de deixar de tomar toda a medicação receitada por esse carniceiro extirpador..." a coisa começou a remoer. Revejo tudo - tudo o que me lembro - e não consigo perceber o que lhe possa ter feito, ou dito, para me ter tamanha raiva. Só não o consegui por bom... nem mesmo um bocadinho melhor! Será porque pensava que a melhor solução era operar?
Não sei... Ou melhor, sei que neste caso tenho a consciência bastante tranquila. Mas não precisava nada de ter lido aquela carta!

terça-feira, fevereiro 20, 2007

 

Comadres e Compadres

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Como é sabido, no Carnaval não há achaques nem maleitas. Por isso, meti uns dias de férias!
Deixo-vos uma imagem da recriação do desfile das comadres e compadres, em Alpalhão.



terça-feira, fevereiro 13, 2007

 

Guelfos e Gibelinos

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Agora que terminou a contenda, que as armas estão guardadas, que voltámos à vida mansa, podemos perguntar como eles muitas vezes perguntaram: Em nome de quê nos confrontamos? O que é que afinal nos separava? Espero, ao menos, que Romeu e Julieta tenham sobrevivido!



Assim, ontem, quase tudo voltou ao normal. Quase, notem!... Dizem que houve um tremor-de-terra e que não terá sido dos pequeninos. Não senti nada nem sei, sequer, onde estava no momento. Só mais tarde a minha filha me ligou a dizer que "tinha sido evacuada". Porquê - admirei-me eu - Por causa do terramoto, claro! - atirou-me ela - Do terramoto!? Qual terramoto??

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

 

Conversa Algarvia

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Entrou rápida e sentou-se irrequieta.

- Ora bem, dona Mena… Vejo que foi o doutor Grilo que a mandou aqui…
- Sim, o doutor Grilo disse que eu tinha que vir aqui para ser vista.
- Muito bem… Teve uns problemas no funcionamento dos intestinos em… Junho, não foi?
- Ahhh… eles até já vinham de antes!
- Pois… E foi ao doutor Grilo que a observou e lhe pediu uns exames...
- E tenho que fazer outro exame?
- Espere, tenha calma… Bem, foi-lhe detectado um pequeno pólipo no intestino…
- Olhe que se é aquele da papa… – e apontava para o fundo das costas – Esse já fiz!
- Eu sei, Dona Mena… O doutor Grilo diz aqui isso. Mas ele manda-a cá para nós ver-mos como podemos tratar o seu problema…
- É o do gel? Aquele do gel aqui? – e apontava para a barriga.
- Ó dona Mena!… Não, para tratar esse pólipo temos que fazer uma colonoscopia.
- Uma quê?
- Uma colonoscopia, dona Mena… Introduzimos um tubo que observa o intestino por dentro, vemos como é o pólipo e, se for possível, retiramo-lo logo.
- É aquele do tubo que entra por aqui? – e apontou para a cadeira, por entre as pernas.
- Sim, uma colonoscopia…
- Ahhh, esse não faço!
- Não faz? Mas porquê?
- Já fiz uma vez em Almada…
- E?
- E custou-me muito… Esse do tubo não faço!
- Mas então porque é que veio cá?
- Porque o doutor Grilo me mandou…
- Mas ele não disse que devia fazer este exame?
- Disse… mas eu disse-lhe que não o fazia!
- Bem…
- Eu bem lhe disse que não queria fazer…
- Olhe, dona Mena, é muito importante fazer este exame… E não há outro, só a colonoscopia é que nos permite saber exactamente como é o pólipo e remove-lo.
- Pois…
- O que lhe posso prometer é que lhe damos uma espécie de anestesia e fica a dormir… Não vai doer nada!
- Mas depois fico com os intestinos todos revoltados eu sei. Já lhe disse que não faço isso, doutor! - Então não estamos aqui a fazer nada, dona Mena. Nem sei porque cá veio…
- Pois, doutor... E agora?
- Agora volta ao doutor Grilo, eu escrevo-lhe uma carta.

Enquanto escrevia espreitava-a pelo canto do olho. Parecia menos irrequieta.

- Mas isto é sério, doutor?
- Ó dona Mena… Pelo que aqui vejo, não me parece! Mas não quer fazer a colonoscopia para termos a certeza, o que é quer que eu lhe diga?
- Acha que é cancro?
- Já lhe disse que não sei, que não me parece. Sem o exame não lhe posso dizer mais nada.
- …
- E então, dona Mena?
- Já lhe disse que esse exame não faço… ainda se fosse aquele do gel!
- Pronto, estamos conversados! Se mudar de ideias, o doutor Grilo pode mandá-la cá outra vez.

Levantou-se e parecia aliviada. Estava muito menos irrequieta.

- Ó dona Mena, é de Elvas, não é?
- Sim, doutor, sou de Elvas.
- Pois olhe que esta sua conversa nem parece de gente de Elvas, de uma alentejana.
- Ai não?
- Não, dona Mena, você já tem é conversa de algarvia!

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

 

Prá mátadona!

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Voltámos ao nosso programa de rastreio num novo Centro de Saúde. Naquele dia calmo, enquanto o trabalho não apertou, encostei-me à porta e olhei em volta.
Durante toda a manhã entraram um após outro, geralmente pela porta lateral, a maioria discretos e rápidos, quase todos calados, num vai e vem contínuo. Entraram um após outro, homens e mulheres, novos e velhos, ricos e pobres, todos iguais uns aos outros e paravam na pequena sala de espera como quem não quer a coisa. Na saleta ao lado da nossa o funcionário aborrecido nem bom dia dizia, conferia os nomes, fazia uma careta e servia-lhes a mistela de uma garrafa opaca com um doseador atarrachado. Bebiam-na toda, de um trago, sem sabor, sem palavras… como quem cumpre um ritual obrigatório mas que não percebe porquê. Ausentes, saíram um após outro e nem até amanhã diziam.
A auxiliar, solícita, segredou-me.
- É prá mátadona, doutor!
- Humm?
- Eles… os drógádos!
- Ahh… pois!

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

 

Do referendo sobre a despenalização do aborto

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Se a visão do aborto clandestino é chocante, pela crueza e solidão que transmite...


... a imagem da vida humana, na sua imensa fragilidade, não pode deixar de nos comover.


Não sei qual a posição certa, não sei mesmo!
Mas não creio que tudo se possa resumir a uma mera questão de consciência indivídual. Vou mais pelas palavras de um prémio Nobel da Medicina, ditas em 1967, aquando da completa liberalização do aborto nos Estados Unidos: "Quanto em valores éticos estará uma sociedade disposta a renunciar em favor da solução de um grande problema social? Isto depende não apenas de sua filosofia ética, mas também da seriedade com a qual se encara o problema a resolver".

Disse isto há quase 3 anos e continuo sem saber qual a posição certa. Dia 11, escondido num biombo, decidirei o meu voto...

[Nota: Post recuperado e reeditado do Dias Que Voam]