sexta-feira, maio 28, 2004

 

Detesto e Gosto...

Detesto as quintas-feiras. Detesto…
Por diversas e aleatórias razões, que não cabe aqui descobrir a causa, coincidem neste dia inúmeros afazeres e obrigações.
É, no fundo, o dia em que, quer no trabalho quer em casa, tenho que provar verdadeiramente aquilo que valho. E muitas vezes, pela noite dentro, de cabeça pousada na almofada, de olhos fechados no escuro, descubro que afinal valho bastante pouco.

Gosto das sexta-feiras! Gosto mesmo...
Em primeiro lugar, porque gosto muito de palavras com xis, como por exemplo: xaile, xarope, oxalá e dextro.
Depois, porque isso quer dizer que acordei de mais uma terrível quinta-feira e que, apesar de mais ou menos dificuldades, cumpri o meu "calvário" o melhor que pude.
Finalmente, porque a tardinha de sexta-feira tem tudo diferente: uma luz mais brilhante, um cheiro mais inebriante, uma calma mais pacificadora..... e sorrisos mais felizes.



segunda-feira, maio 10, 2004

 

O milagre

O doente, chamemos-lhe Teófilo, quando entrou no hospital estava do pior, mesmo do pior que se possa imaginar. Já era, vagamente, do nosso conhecimento: bebedor de reconhecida valentia e preserverança, vinha mais uma vez com sua cirrose completamente descompensada.
Ficou alguns dias em SO nos quais tudo se foi lentamente piorando: a icterícia agravou-se, a ascite aumentou, vieram as febres e até convulsões. Entrou em coma profundo, num sono longo e sem volta, e nunca mais ninguém o ouviu pronunciar uma palavra.
Um dia, depois de de um périplo por alguns Serviços do hospital, veio parar ao nosso, cheio de tubos e catéteres. Ninguém continuava a dar um tostão furado por ele. Nada funcionava no Teófilo: mantinha-se no seu coma profundo, o fígado nas lonas, os pulmões mal respiravam e os rins tendiam a parar. Todos uns dias era um suceder de novos acontecimentos aos quais respondiamos como podiamos: novas infecções, novos antibióticos, novas intercorrências, novos tratamentos... e assim iam correndo os tempos, ao sabor dos acontecimentos.
Outro dia, muitos depois daquele em que lá tinha chegado, pareceu-nos que estaria menos amarelo, que até respirava melhor e a barriga estava menos inchada. Depois desapareceu a febre... a até começou a mexer as pernas e braços.
Até que abriu os olhos e... ressuscitou!
Mas não era este o milagre a que me queria referir. Este foi apenas raro acaso, um misto de êxito de ciência e de sorte.
O verdadeiro milagre é que, quando o Teófilo acordou, nunca mais disse uma palavara em português, uma que fosse... passou a falar só espanhol, um castelhano verborreico, fluente e bem timbrado, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida.
Isto sim, é um verdadeiro milagre!

quinta-feira, maio 06, 2004

 

Um dia de chuva

Não sei porquê, mas desconfio que vai cá aparecer a D. Fernanda... nos dias de chuva é sempre mais provável.
Não sei porquê, mas tenho um verdadeiro pavor da D. Fernanda. Aparece de repente, vinda não sei de onde, quase como se materializasse num ápice e diz: Doutor, posso só fazer uma perguntinha?
E claro que faz. Não uma, mas duas, três ou dezoito. Sobre tudo, sobre as maleitas dela, da mãe que cospe cola, da filha magra que vomita, da madrinha muda que tem dores, do pai que tem sei lá o quê, até para o cão pede medicamentos... até que eu, deixo de ouvir, deixo de ver, quase que me esvaneço dali, até ouvir a frase salvadora: Até outro dia, doutor...
E pronto... pode ser até que pare a chuva!

domingo, maio 02, 2004

 

A minha avó

A minha avó morreu. Morreu há quase um mês, bem pertinho da páscoa.
Depois daqueles momentos iniciais, quase irreais, em que tudo se passa como se fosse um sonho esquisito, voltei cá para baixo, para longe de casa e tudo pareceu que tornou à normalidade.
Hoje, quando telefonei à minha mãe para lhe dar os parabéns, e um grande beijo, percebi, no meio de uma voz triste, que eu tinha a sorte de ter uma mãe para dar um beijo.
É que a minha avó morreu, e a normalidade nunca mais será igual ao que era.
Nunca mais a vou visitar, para lhe dar um beijo e dizer olá avó, como está. Para falar das maleitas e passar as receitas do costume
Nunca mais a vou ver, sentada no sofá, pequenina, a fazer renda ou a chorar com as novelas.
Nunca mais a vou ouvir contar as histórias do meu bisavô Ventura, da fábrica da electricidade e da quinta do Reguengo.
Nunca mais a vou escutar a falar da casa dos três cheiros, da casa das três janelas e dos três doentes.
Nunca mais vou ter avó...
E foi assim que descobri a razão para hoje ter sido um dia feio, cinzento e molengão, cheio de uma chuva pegadiça.