sábado, outubro 11, 2003

 

Não era preciso nenhum médico (1)

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Setembro

Estava numa daquelas tardes quentes e mornas, sentado no consultório, sem ninguém à frente. O habitual, pensava eu mas não era coisa que me causasse angústia. Gostava de estar ali sentado sem fazer rigorosamente nada, a fingir que olhava o tecto mas fixando um ponto qualquer muito além deste, algures perto das núvens. Às vezes quase atingia o grau zero da actividade cerebral, outras ficava ficava a flutuar nesse limbo indefinido entra a realidade e o sonho. Depois da correria desorientada da manhã hospitalar estes eram tempos únicos.

O consultório não era um consultório, era um cubículo arremedado de ares sanitários. Tinha um ar limpo, asséptico e desinfectado, como convém, mas não servia para mais nada que não fossem umas perguntas e respostas em íntima privacidade. Havia uma grande janela com um daqueles estores corridos de ripas em politileno, ou o que seja, que deixava entrar a luz clara de Verão e inundava mansamente o ar. As quatro paredes ficavam brancas, de um branco puro que chegava a ferir o olhar. Na minha frente a marquesa e o lavatório… que conjunto! A primeira já um pouco descaída, talvez mesmo já na rampa descendente, mas imponente, macissa e acolhedora. O lençol, também branco, e a protecção de papel dão-lhe uma ar até distinto, só dela. É ali que os pessoas procuram o último refúgio, onde verdadeiramente se sentem doentes. O lavatório, coitado! Cor de rosa, com torneados, de pé alto e espigado a sair do chão e torneiras meio babonas… o que é que fazia ali no cubículo médico? Era como que um mordomo deslocado ou desfocado da marquesa.

Toca o telefone. – Chegou o doente! – disse a voz.
Minutos depois entra o doente no consultório. Era um homem de sessenta e tal anos, baixo, bastante baixo e atarracado, de feições grossas e marcadas pela vida. Tinha movimentos lentos, pausados e sentou-se só depois da licença. Via-se que era um calado, mas também não era um observador, tinha um olhar ausente, fugidio e a expressão triste e cansada. Sim, muito triste e cansada… o que é que carregaria nos ombros? O peso de anos de trabalho? Um segredo de tonelada! Ou só o temor da doença?
Depois dos introitos habituais, passámos à questão
- Então diga lá… o que é que o preocupa? Do que é que se queixa? – disparei.
- É o estômago, doutor… isto não anda nada bom! – contristado.
- Não anda como?
- Anda aqui uma dor no estômago. Há mais de um ano… é aqui! – e apontava de mão aberta aquela zona vasta acima do umbigo onde convencionamos estar acomodado o estômago. – É uma dor que não me larga, misturada com ardor, azia, sei lá…
Estava dado o mote. Seguiu-se o ritual da pergunta e resposta e tentei perceber a dor: como aparecia, como aliviava, para onde irradiava, como era acompanhada e se havia alguma coisa de alarme. Nada parecia surgir de relevante.
- E diga-me,… neste tempo todo nunca foi ao médico, nunca fez exames? – sondei.
- … Pois, fiz… fiz uma… ah! Aquilo do tubo.- gagueja.
Boa! Já tem uma endoscopia feita.
- Uma endoscopia? – afirmei, perguntando.
- Pois, uma endoscopia. No principio do ano… em Fevereiro talvez. Não acusou nada, a não ser uma hérnia. – resignado.
Ah! Tem uma hérnia do hiato, e pelos sintomas tembém tem esofagite. Mas e a dor?…
- E tem aí o relatório, deram-lhe algum medicamento? – perguntei, descrente.
- Não trouxe o relatório…- confirmou
… O costume…
- Deram-me umas cápsulas… ahhh, Proclor. Tomei três ou quatro meses e nada – assegurou.
- Nada? – duvidei.
- Bem… a azia desapareceu…. E a dor também melhorou. Mas quando parei voltou tudo à mesma. – condescendeu.

Estava tudo dito, o momento crucial aproximava-se: o veredicto, a decisão. Entretanto há que seguir o ritual, observo o doente enquanto assento ideias. Sessenta anos, dor epigástrica com pirose, sem nada de alarme. Triste mas sem ansiedade ou mariquices…não tem nervos. Endoscopia feita há seis meses, .. local seguro, nada de grave. Não vi o relatório mas é sempre a mesma coisa, devem pensar que é segredo! Pode ser refluxo, melhorou com omeprazole e depois piorou. E a dor?…
Exame objectivo normal, escrevi.
- Penso que o senhor tem uma esofagite de refluxo, com um componente de dispepsia funcional…. – proclamei – A endoscopia que fez há seis meses deixa-nos seguros – e fiz o sorriso calmo e seguro. Será que funciona?
- O doutor é que sabe… - resignado.

Seguiu-se a cartilha: insistir na dieta, novo medicamento, igual mas melhor, fazer umas análises que há muito tempo não faz e rever após um mês.
Quando nesse fim de tarde voltava de carro para casa sentia-me satisfeito. Uma tarde relaxada, calma… dois doentes, tudo claro. Autoestrada, apontar o carro ao sol e vamos persegui-lo entre cerros e ribeiras, rumo a ocidente. Meter uma quinte calma, Highway to Heaven bem alto, fechar os olhos e descansar até Faro… o caminho é sempre em frente!

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