segunda-feira, outubro 27, 2003

 

Não era preciso nenhum médico (3)

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Novembro

O tempo ficou definitivamente frio, quase de repente. Hoje é outro dia de descanso, só dois doentes marcados e vim uma hora mais cedo. Mas o cubículo já não é o mesmo. Já não há luz nenhuma a entrar pelas janelas, não há calor, aconchego. As paredes estão francamente sujas, num branco baço e desbotado, de certeza pegajosas ao toque. A marqueza perdeu toda a altivez, não passa de uma velha maca de consultório a dever uns bons pares de anos à reforma. E o lavatório?… está aqui completamente deslocado, nem na casa de banho. Com uma marreta na mão fazia-se um bom trabalho!
Tenho frio… vamos lá aquecer o ar condicionado.
- Está aí o Sr. Manuel – disse a mesma voz do auscultador.
Quando entrou vinha muito mais pequeno, mais atarracado e mais triste quo o habitual. Claramente não estava melhor. Com ele vinha a mulher, que eu nunca tinha visto mas só podia ser a mulher. Era mais pequena, mais atarracada e mais triste quo o Sr. Manuel. Quase sem palavras sentaram-se- num repente e pousaram o pardo envelope de radiografias na secretária.
- E então, como vai?… o estômago melhorou? – esperando não me repetir.
Pensei que fosse ela a responder mas surpreendentemente revelou-se muda.
- Na mesma , doutor,… na mesma! – desanimou.
- Não pode ser!… não melhorou nada? – animei.
- Quase nada… alguns dias ando melhor mas depois volta a dor… quando como é pior… quase não como! Acho que isto não está nada bom!- terminou.
- …
- e já perdi cinco quilos. – arrematou.
Olhei para ele com o ar pensativo de doutor. Continuava a ver um homem triste, calado, cansado. Assustado? Já não dizia mais nada, e a mulher em apoio total. De facto não conhecia nada deste doente. Algumas perguntas, sim, não, não… nada mais lhe saía.
Reobservação inalterada, exames normais, novo veredicto?
Decidi falar, puxar por ele e tentar perceber um pouco melhor a pessoa triste que se sentava à minha frente e até agora só me telegrafara algumas queixas mais ou menos óbvias. Triste sempre fora, como o pai e o avô antes do pai, mas agora andava mais. Pudera, andava preocupado e sem saúde… O trabalho na indústria conserveira andava mal e os tempos livres ocupados como servente de pedreiro mal andavam. Claro, assim doente..! E a reforma ainda longe… longe… e miserável de certeza. Enfim uma vida que não queria para ninguém.
Aí está! Consegui algo?
- Sr. Manuel, confesso que queria e gostava que estivesse melhor. Essa dor que não passa deixa-me preocupado… - inicio.
- …
- mas já fizemos todos os exames, mesmo agora a ecografia e radiografia do estômago estão normalissimos. As análises, óptimas… quando o observo não encontro nada. Podemos repetir a endoscopia mas acho que não vale a pena… não irá mostrar mais nada… - avanço.
- …
- Mas… parece-me triste.. abatido. Deprimido como nós dizemos. Muitas vezes é a depressão, que é causada pela doença que não deixa a doença melhorar… - desenvolvo.
- Não sei… - finalmente.
- Vamos tentar uma última hipótese… muda-se o medicamento para o estômago e começamos outro novo, que actua no cérebro e também no estômago. – proponho.
- O doutor é que sabe…- faltava esta.
- Só sei o que posso…Um mês! Se continuar assim, temos que repetir tudo…vamos para o hospital, fazemos endoscopia, TAC, tudo! - concluo, esperançado.
- Pode ser… mas não sei…
A esperança desvanece-se, apenas um fugaz brilho nos olhos, mas a tristeza prevalece.
- Doutor!! – Ahhhh… sempre fala – Tem que fazer qualquer coisa..ele assim não está bem! Estou farta de o ver sentado a mesa, a olhar prá comida, com aquela cara…
Olhei a mulher e tentei um sorriso calmo e seguro mas apenas recebi, de volta, um desânimo frio que me assustou.
A tarde clareou e está um sol pálido de inverno. Vou novamente atrás dele, para casa, para longe. Volto à quinta calma, Sultans of Swing suaves… mas não fecho os olhos, a consciência ganhava peso. Talvez devesse ouvir o Requiem.

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