domingo, novembro 02, 2003

 

Não era preciso nenhum médico (5)

.
Janeiro

Natal e Ano Novo no Alto Alentejo, em casa. Aí sim, frio a valer, bem seco e cortante, que nos afaga e enrija. Aí sim, cheira a Natal. Não sei do que é, se do nevoeiro e da humidade ou se dos fritos e azevias e do picão das brazeiras. Não sei mesmo até porque muitos desses cheiros já desapareceram, mas só lá é que os cheiro, talvez vindos lá do fundo de uma infância adormecida. Mas só lá me cheira a Natal.
Voltei e encontrei o cirurgião já de faca recolhida. Uma desgraça, aderências, invasões, irressecabilidadae, cirurgia paliativa. Não terá para seis meses!
Dois dias depois, enquanto arrastava a pouca vontade de o visitar no quarto piso, estava a meio de uma manhã de consulta campal. Abri a porta e lá estava ele.
Continuava pequeno, atarracado, com o mesmo ar calado e triste mas agora aliviado. Sim, já não tinha aquele ar assustado que eu demorara tanto a ver, estava claramente aliviado. Junto, a mulher, distante e fria. Estava também a filha, olhar incisivo e acusador. Só o neto, ao colo da mãe, sorria um sorriso alegre e solto de criança.
- Podemos dar uma palavra? – ordenou.
- Claro, entre… - obedeci.
Entraram todos, continuava sempre aquele silêncio, aquele não falar. Sentaram-se, a filha continuou de pé com o filho ao colo.
- E agora, doutor,… o que me diz? – fugaz brilho nos olhos.
- Bem.. é escusado dizer que isto não correu como eu e o senhor queriamos… o seu problema no estômago é mais grave do que todos os exames que fizemos levavam a supor.- realista
- …
- Mas começou-se o tratamento… vai-se continuar a fazer o melhor. Devemos manter a esperança!- piedoso.
- …
E surgiu-me a pergunta fatal, vinda sei lá de onde.
- E o senhor,.. que me diz?
- O que lhe digo, doutor… o que lhe digo é que não era preciso nenhum médico para ver que eu tinha um cancro no estômago! – esmagou
Nessa altura olhvamo-nos nos olhos e voltei a ver o brilho alegre fugaz a desvanecer o mar de tristeza. Eu não sei que brilho tinha eu nos olhos enquanto levava o pior murro da minha vida. Não vi a mão, nem me bateu em lado nenhum mas a dor, que também não é em lado nenhum, ainda se mantém. Às vezes adormece, esvai-se, quase desaparece mas sem eu saber porquê, sem ser chamada, volta sempre algum dia.
Não me lembro como nos despedimos. Depois desse dia nunca mais o vi. Entrou na engrenagem hospitalar e seguiu o seu cálvario.
O cubículo onde lá dou consultas contínua escuro, mesmo nos dias mais claros de verão. De vez em quando dou pontapés na marqueza e nem olho para o lavatório. Volto à tardinha para Faro, persigo o sol que se põe, quinta calma, High Way to Heavem bem alto, olhos fechados. O caminho é sempre em frente…


Comments: Enviar um comentário

<< Home