quarta-feira, novembro 26, 2003

 

O Sr. Correia, a sua mulher, a comadre e o motorista [ou a comadre do motorista] (4)

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Depois do momento [ou o motorista da comadre]

Passaram-se tempos, meses! O Sr. Correia voltou à consulta. Mantinha o ar, a pose, aquela solicitude deslocada mas parecia-me haver sempre uma tristeza de fundo que não conseguia esconder. Ainda lhe perguntei, meio a brincar, como andava a comadre mas não deu muito andamento à conversa. A consulta estava a despachar e não liguei muito. Ainda havia de descobrir o fim da história.
Por essas alturas, ou uns tempos depois, aparece-me na consulta um homem, ainda novo, quarenta e tal anos, ar alheado e inexpressivo. Vinha ele e a mulher, também por essas idades, ainda bonita de cabelos castanhos meio longos e olhos escuros, sempre com um sorriso intrigante e permenente.
Foi uma daquelas consultas que não percebi bem para que serviu. Era ele o doente mas o médico, eu, não vislumbrou a doença. Não tinha uma dor, mas sim uma impressão. Não era bem aqui, mas sim mais por ali. Não tinha falta de apetite, mas comia pouco. Não se sentia doente mas sim, tinha qualquer coisa. Enfim, ele até não queria ali vir mas ali estava! Tinha sido a mulher que lhe tinha marcado a consulta, não andava com boa cara, dizia ela.
De facto ele manteve sempre uma má cara durante toda a consulta, vaga, apagada, escassos ou nenhuns sorrisos. Ela manteve-se sempre com o mesmo sorriso, intrigante? Ouvia tudo, atenta, e participava com os costumeiros: vá lá, diz!… Às vezes sentes isto!… Fala, homem!
Acabei por apurar qualquer coisa: uns gases, uma impressão vaga no abdómen.. e pouco mais. Observei-o e arenguei um pouco sobre Cólon Irritável, ou Colite Nervosa como muitos dizem, sobre o stress e os tempos modernos de muito trabalho sem nexo e sem fim. Pouco convicente achei eu, nada convincente mostrou ele!
Estava eu no dilema do passo, não passo receita, quando ela surge…
- Ah!… Doutor sabe… viemos aqui recomendados por um seu doente, lá do hospital… - sorriu.
- Ai sim… - longe.
- Sim… o Joaquim Correia… Ele anda lá há tempos, teve qualquer coisa no intestino. É nosso vizinho em Almansil… até é nosso compadre! – concluiu.
Não me digam… querem ver! Esta é a tal comadre! E saiu-me, quase sem querer
- Ahhh.. então você é o motorista!
Ele ficou com um sorriso surprendido, meio apalermado, ela com um sorriso ainda mais misterioso, meio comprometido e eu com um sorriso irónico, meio cúmplice.
Não passei receita. Discursei sobre os benefícios da boa alimentação, vida saudável, muitas distracções…enfim, dar importância às coisas boas e simples da vida. Fui convincente? Não sei, depois de sairem, não mais os voltei a ver e continuo a não saber bem para que serviu aquela consulta.

O Sr. Correia, esse continua a vir regularmente à consulta e continua bem como se espera.
Mantém a mesma pose, a tal solicitude sorridente mas pegajosa e os seus discursos falsamente atabalhoados, sempre com um fim em vista. Continua de fato e gravata a condizer e até me parece que, mesmo nos maiores calores, já não os dispensa. Mas continuo a acha-lo sempre triste, lá bem no fundo. Nunca mais me falou na comadre e eu também não lhe perguntei. Acho que nunca terá feito a tal visitinha à comadre, depois do jantar, para ver o que acontecia… ou terá feito?

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