sexta-feira, novembro 14, 2003

 

O Sr. Correia, a sua mulher, a comadre e o motorista [ou a comadre do motorista] (1)

.
A mulher do Sr. Correia [ou mesmo antes do momento]


Nesse dia a consulta corria calma. Ainda mais calma do que se podia imaginar, pois nessa altura já tinha um interno, uma espécie próxima de escravo privativo, que me fazia o trabalho de sapa enquanto eu, ao lado, pensava ou divagava sobre qualquer coisa pouco importante. A consulta hospitalar podia tornar-se uma rotina, uma coisa muito maçadora por vezes. Tudo muito protocolado, tudo muito seguimento de doenças ja previamente conhecidas. Não há, nem de longe aquela alegre variedade, aqueles doentes não doentes, as histórias mirabolantes de uma consulta de consultório.
Estava na altura sentado na nossa frente o Sr. Correia, doente em seguimento já longo de uma neoplsia do cólon operda vai para dois anos. O Bruno, o interno, despachava paulatinamente o plano pré-estabelecido: E a obrar, está tudo bem?… Tem dores de barriga?… O apetite, como vai?… Mantém o peso, emagreceu?… Ora vamos lá ver as análises… tudo bem! A Ecografia… óptima!
O Sr Correia continuava em forma como se esperava! Nesse dia parecia um pouco triste, as respostas eram curtas e rápidas, logo nele que costumava divergir e divagar antes de dizer um simples sim ou não. Nessa altura o Bruno, já pensando que dominava a situação, decide distender.
- E a sua esposa?… hoje não veio,… costuma vir!
Aí a expressão do homem ficou mesmo triste e o pouco viço que tinha nos olhos desapareceu. Está de preto…! Trazia o habitual fato e gravata mas em tons francamente escuros, e estavamos em Maio
- Ai, doutor… pois é, a minha querida esposa! – lamuriou.
- …
- Desde há sete ou oito meses que começou a ficar mal… ela tinha sido operada a um peito há mais de quatro anos e agora voltou tudo… voltou tudo! Faleceu há dois meses, até faltei à última consulta… - continuou.
- Oh Sr. Correia.. pois – titubeava o Bruno, afinal não dominva assim tanto a situação. E o homem continuou.
- Acompanhei tudo, tudo… coitadinha, tanto sofrimento. Os meus filhos estão em Lisboa… no fim era eu a fazer-lhe tudo… assistir a tudo, aquele sofrimento –tremelicou.
Os olhos agora estavam bem brilhantes e uma lágrima teimava em querer escapar-se, bailando no canto do olho. O Bruno mexia-se na cadeira, desconfortável, enquanto tentava passar as próximas análises e radiografias.
- Os doutores desculpem, mas isto abalou-me muito! Logo agora que tinhamos a vida arrumadinha… que começavamos a gozar os nossos dias… É que a vida não nos foi fácil, os negócios ultimamente corriam bem e podiamos nós estar bem… logo agora! Logo agora, coitadinha.. minha pobre mulher.- Fungou.
A lágrima scapou mesmo, despenhando-se cara a baixo até ao canto da boca, ao queixo. Com ela trouxe outras. Puxou do lenço, assoou-se, descansou. Era uma tristeza sentida, genuína, ou era assim que parecia. Duas vidas cortadas…Intrevi
- Vá lá, Sr. Correia… então? Há coisas que não podemos arranjar, mas há que olhar me frente. Agora há o senhor, os seus filhos, o que mais vier – sentenciei.
- Desculpe doutor, desculpe… é que isto abalou-me muito, muito!… nem imagine, e eu com a mesma doença – lamentou.
- Não tem nada que pedir desculpa, isto é mesmo assim… mas o senhor não está na mesma situação… - alonguei.
- Não, doutor…?
- Não, Sr. Correia! Está tuod a correr bem e vai continuara assim. Não tem que pensar dessa maneira. – finalizei
Pareceu acalmar um pouco. As lágrimas calaram-se, guardou o lenço. O Bruno voltou ao comando.
- Sr. Correia vamos lá em frente! Tem aqui as análises e a ecografia para a próxima consulta. Marca dentro de três meses… Precisa de receita?
A consultaia acabar. Fugira ao esquema habitual e sempre impessoal do sim, não está tudo bem, está tudo mal. O Sr. Correia trouxara algo de fora, que não tinha nada a ver com a doença que o trazia ali. Mas era evidente, ou parecia, que o facto o perturbava muito enquanto doente. Era também evidente que nós, médicos, continuavamos a não lidar bem com estas intromissões. Sobretudo não gostavamos de lidar com elas!

Comments: Enviar um comentário

<< Home