quinta-feira, novembro 20, 2003

 

O Sr. Correia, a sua mulher, a comadre e o motorista [ou a comadre do motorista] (2)

.
O Sr. Correia [ou muito antes do momento]

Conhecia o Sr. Correia há muito tempo. Já não me lembro como, apareceu lá na consulta do hospital com queixas vaga que não valorizei muito. Provavelmente era primo de uma irmã de uma qualquer auxiliar num qualquer serviço do Hospital, pois são precisamente estes doentes que mais rapidamente chegam à consulta. Acabou por fazer uma sigmoidoscopia e diagnostiquei-lhe um cancro do cólon. Era uma forma precoce, como mostraram os exames de estadiamento, foi operado e curado, assim acreditamos nós e rezam as crónicas até à data. A partir dessa altura passou a ser seguido na nossa consulta e de três em três meses lá nos viamos para falar um pouquinho, ver as análises e radiografias, e assegurar um bom futuro.
O Sr. Correia era um algarvio nato, ali dos lados de Loulé, com residência perto de Almansil. Era alto, seco de carnes, face magra e olhos encovados protegidos por óculos de armação. Tinha um cabelo negro mas rodeando uma careca daquelas já bem brilhantes. Teria uns sessenta anos. Apresentava-se sempre no monótono conjunto da calça tipo fazenda, camisa riscada e casaco neutro de tons claros. Gravata a condizer. Por vezes, lá no pino de Verão dava-se a liberdade de nos aparecer em mangas de camisa e sem gravata.
A falar tinha um discurso arrastado, confuso, redondo. Muitas vezes eu não percebia o que queria dizer ou onde queria chegar. Tinha também o irritante hábito de repetir pequenas expressões para melhor vincar os seus humores e, para castigo dos meus pecados, queria sempre falar muito dos negócios, como ele dizia. Os negócios tinham sido a compra e venda de peixe em Quarteira e, agora, eram compra e aluguer de apartamentos de férias, bem mais rendosos ao que parece.
Parecia afável, sempre sorridente e muito prestável, mas ficava-me sempre um quê qualquer. O sorriso tinha algo de interresseiro, parecia-me, e o falar era pegajosos com demasiados doutor, doutor, obrigado, mande sempre, mande sempre! Aliás como disse o Sr. Correia era um algarvio nato. Já faz mais de doze anos que vivo no Algarve, os meus filhos são algarvios mas os meus costados alentejanos, de aspecto pachorrento mas observador, ainda me deixam desconcertados com esta gente.
É que há algo, no algarvio, que me deixa sempre desconfiado quando falamos. Não em tdos, claro, mas me muitos! Não sei explicar bem… é como uma sensação de que o baralho nunca está completo, que há sempre uma carta for a do baralho pronta a ser jogada em último, ou primeiro recurso. E mais… a carta nunca é guardada na manga. Não, isso era muito óbvio, é sempre noutro lugar. Pode sentar-se em cima dela, pô-la atrás da orelha, se possível atá a engole. Pode até nem existir essa carta, já ter sido perdida há muito tempo mas a impressão, a sugestão de que ela existe está sempre presente.
Uma vez um amigo contou-me uma história que lhe contou outro amigo. Uma vez um Algarvio retinto, ali do Barrocal, espaço informe algures entre o litoral e a Serra onde crescem as alfarrobeiras, foi ao advogado por causa de uns problemas de terras. Coisa antigas, de partilhas e despartilhas, limites e muros.
O homem lá começou a explicar a contenda ao advogado. Eu tinha ali a terrinha e depois isto e aquilo, veio o outro pôs um muro, vou eu desvio o marco, vem o outro diz que tal coisa, vai de aí eu digo que coisa e tal já marafado… O advogado atirava perguntas directas e certeiras, o homem respondia claro, sem rodeios. Um espanto! Até que a história chega ao fim.
- E então, doutor, o que é que acha? – pergunta o homem
O advogado consulta as notas, pensativo, demora uns segundos.
- Bem Sr. Manuel… pelo que aqui vejo parece-me que o senhor não tem razão.- disse meio a medo - A outra parte está mais forte! – concluiu.
- Ahhh… doutor! Assim parece-me que nos vamos entender – exclamou orgulhoso.
- ?… - sem entender.
- É que eu… sou o outro!! – o sorriso era triunfante.
Eu acredito na história. Neste caso era a carta perdida que estava em jogo e faltava todo o baralho. O Sr. Correia encaixava que nem uma luva nesta descrição.

Comments: Enviar um comentário

<< Home