terça-feira, dezembro 02, 2003

 

Uma Madrugada na Urgência (1)

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De madrugada

Quando enfiou a lâmina macia no pernil os nossos olhos brilhavam. Os do Pedro chispavam… gostava sempre de dar o primeiro golpe! O momento era de tensão à medida que aprofundava o corte – Uma perfeição… isto está do melhor! – ouviu-se – Podes crer – apoiou-se! – o vinho não vai ficar atrás.
O pernil de porco, assado como convém, era um manjar de se chorar no Álvaro, e hoje iamos chorar muito, de certeza. Foi nessa altura que começamos a ouvir um burburinho lá for a e uma voz que sobressaía
- mas porque é que eu não posso entrar? – levantava.
- …
- mas eu quero entrar… - levantava ainda mais.
Que coisa. Mas para que é isto!
- O meu pai está mal… não está nenhum médico aí dentro? – já gritava.
Como…? Mas como sabe que estou aqui?… logo aqui!. logo aqui?…
Acordei. Doiam-me as costas e sentia frio pois há algum tempo que estava caído, em sono solto, na maca dura do Balcão Homens do hospital. Acabou-se o pernil… já não estava a chorar!
Nesse tempo ainda dormia como um morto, ou um anjo, em qualquer lugar. Acalmando a noite na Urgência, lá pelas três ou quatro da manhã, aterrava numa maca e escondido atrás do tabique, dormia. Dormia a sério, até sonhava! Fosse agora…
Acordei, doiam-me um pouco as costas e tinha frio. Eram cerca de seis da manhã e o ar condicionado atingira o seu esplendor por essa altura. Enquanto saía do esconderijo para ver o que se passava, senti um rápido arrepio nas costa. Tinha mesmo frio. Áquela hora da madrugada o balcão tinha um ar fantasmagórico, a penumbra já ia clareando mas ainda reinava o tom pardo e silencioso da noite. Nas boxes e macas, um pouco por todo o lado jaziam corpos de doente, de outros menos doentes e também dos seu esforçados curadores. Era um mundo quase mágico pois estavam todos calmos, repousados, alguns até pareciam sorrir. Por essas poucas horas todos os males aliviavam, não se gemiam gemidos, não se ouviam queixumes.
Nessa altura lemberi-me de uma história, passada tempos antes… um homem já idoso, bem idoso, entrara na Urgência por estas horas, por estas horas, bastante mal. Vinha praticamente a despedir-se e pouco depois, depois de algumas medidads mais expectantes que efectivas, despediu-se mesmo se demoras. Após a sua retirada para a morgue, o Dr. Videira, médico já tarimbado, chefe de equipa, sempre com um ar distante e austero chamou o filho para dar-mos a notícia. Passados minutos entra o homem neste pequeno mundo mágico, o balcão estava como hoje: calmo, escuro, silencioso e frio, e em todos os cantos repousavam doentes. Com passos pequenos e cautelosos aproximou-se de nós, lançando miradas rápidas em redor. O Dr. Videira deu-lhe a notícia que ele já sabia com calma profissional. Após um breve momento de resignação o homem olhou então em volta, já não uma pequena mirada, mas um olhar demorado ainda que intimidado e assustado, e desabafa.
- Já se sabia… esta idade, as doenças!… Só uma coisa, posso vê-lo, qual é ele, deste corpos?
- …
O Videira ficou mudo e eu começei a rir, silêncioso! Então não é que o homem pensava que estava no meio de dezenas de mortos! Nessa altura, de repente, muito de repente levanta-se de uma maca o Soleiro, médico meio doido, pálido, de olhar esbugalhado e cabelos revoltos e soltou um ahhh vindo das profundezas. O homem deu dois passos atrás e a expressão passou de asssustado a aterrado. Estava a ver Lázaro!
Não resisti... saí do balcão em passo rápido, com um riso ruidoso.

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