terça-feira, dezembro 09, 2003

 

Uma Madrugada na Urgência (2)

.
Nessa madrugada

Nesse dia estava na porta do Balcão um homem novo, mais ou menos da minha idade,, que era o que barafustava e levantava a voz. A seu lado, um homem mais velho arfava, aflito, encostado à parede. Um enfermeiro tentava acalmar o novo e sentar o velho.
- Que se passa? – acalmei.
- O meu pai… está mal, não vê? Está assim desde à bocado e já lhe doia o coração depois de jantar! – continuava a disparar.
O mais velho parecia mesmo aflito. Enquanto tentava não ouvir o filho, que continuava em rédea solta, auscultei rapidamente o pai. Edema pulmonar agudo
- Calma…, vamos já já ver isto. – assegurei.
- Calma, nada!… estou aqui há mais de cinco minuto e não me queriam deixar entrar… E o meu pai assim! – já gritava outra vez.
Já estava a ficar farto, a calma já lá ia. Acordar logo assim. O enfermeiro já sentara o doente e tinha colocado oxigénio nasal.
- Espere… - disse para o enfermeiro, e então gritei eu – Uma maca!… Sr. maqueiro, uma maca! – Sempre a mesma coisa, chegam estas horas e os maqueiros volatilizam-se
- Uma maca?… - gritou novamente o filho– o meu pai assim e você vai pô-lo aí numa maca.. era o que faltava! - esbracejava
Nesta altura podia ter mantido a tal calma com que iniciei a conversa e explicar que iamos por o pai dele numa maca, porque era melhor, porque a situação era grave e iamos leva-lo para a Sala de Directos para iniciar o tratamento. Mas, por vezes, nessas madrugadas tomamos caminhos que não são os nossos.
- Chega!… Nós vamos tratar o seu pai. Ele está bastante mal, como vê.. e você cala-se já! Não está aqui aos gritos que estão aqui pessoas doentes! - zanguei
- Calo-me?… essa é boa.. era o que faltava – desafiou, gritando.
- Cala-se e vai já lá para for a que não está aqui a fazer nada – ordenei.
- Não vou nada lá para for a! – ameaçou.
Já chegara o maqueiro, a maca e outra gente, que só chega quando já há barulho. Disse ao enfermeiro para ir para os directos com o doente e começar soros, diuréticos e oxigénio… o costume.
- Sr. Segurança… leve este senhor lá para fora!.. está aqui a incomodar toda a gente. – concluí.
- Você vai ver.. o meu pai assim.. nem sabe o que lhe acontece – desatinou.
- Já lhe disse… vamos tratar do seu pai! – E voltei costas.
Ao me encaminhar para os directos ainda o ouvia a esbracejar, a vociferar ameaças enquanto o segurança o tentava levar para a sala de espera do exterior. Podia ter sido mais suave, perder mais cinco minutos mas achei que tinha sido melhor assim. O tipo parecia uma besta com muito pouca capacidade de entendimento. Senti um novo arrepio rápido nas costas, mas já não parecia estar frio.
Nos directos já decorriam as primeiras medidas: veias canalizadas, oxigénio a mais de dez litros e monitores ligados.
- Sentado, tem que ficar sentado… têm garrotes? ECG, temos que fazer ECG – pensava alto.
- Não está muito bem.. as tensões estão baixotas – disse o enfermeiro.
- Quantos furosemidos já demos? – perguntei enquanto o via a arfar.
- duas ampolas - respondeu
- dê mais 2 formulas… as tensões aguentam! - decidi
Auscultei novamente, estava completamente encharcado, Pálido, arfava e colocava as mãos no peito. Os olhos suplicavam uma ajuda que tardava. Agora tinhamos que aguardar um pouco e, enquanto lhe colocavam a algália, apurei que tinha antecedentes de angina de peito ou enfarte. Com esta dor no peito não augurava nada de bom.
- Aguentou-se bem com o filho, doutor… eu conheço-o… é um brutamontes, só arranja problemas! – voltou o enfermeiro.
- Pois… podem chamar a Drª Lídia? – respondi.
Uma excelente medida, pensei. E enquanto esperavamos a Dr. Lídia passei a observar. Parecia um pouco mais calmo, se era possível. Já estava algaliado, ia-se começar o ECG. Há que esperar que o furosemido actue, que chupe toda aquela agua que está a mais nos pulmões e a envie direitinha para os rins e bexiga. Há que esperar! Se tivermos coração à altura, temos homem.

Comments: Enviar um comentário

<< Home