terça-feira, dezembro 16, 2003

 

Uma Madrugada na Urgência (3)

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Vai ou não?

Entrou a Drª Lidia no seu passo miudinho e rápido, cara vaga e inexpressiva e sempre de permanente bem arrumada. Como consegue, mesmo às seis da manhã?
Era uma médica muito experiente, na altura Chefe de Serviço de Medicina. Tinha vindo de Macau há pouco tempo para onde tinha ido, dois ou três anos antes, curar males de desamores. Era uma mulher eléctrica, não parava, sempre ligada à corrente mas à força de muitos comprimidos, dizia-se. Tinha má fama entre os internos, nós, por nos pôr a trabalhar demais. No serviço fugiamos dela pois descobria sempre mais um doente, sem história clínica feita ou com mais seis ou sete exames complementares óbvios para serem pedidos, nos próximos cinco minutos. A Urgência com ela era um suplício, especialmente de noite… cada novo doente que internavamos era um mar de problemas clínicos, hipóteses diagnóstico e exames mirabolantes… de fugir! Está-se a ver que a minha decisão de a chamar, naquela noite, tinha sido corajosa.
Mas era uma excelente médica e colega, como ainda não tinha tido hipótese de comprovar.
- O que temos, doutor Pedro…- olhos brilhantes, cara vaga.
Mas porque insiste em chamar-me Pedro, porra!
- Edema pulmonar! Tem antecedente s de cardiopatia isquémica a começou com dor após o jantar… já começamos as medidas habituais… tem oxigénio a vinte litros e fez quatro fórmulas de furosemido. – disparei.
- idade? –ela.
- idade?.. –eu.
- Sessenta e oito… - o enfermeiro.
- está aquio o ECG… - divergi.
- …
- pode ter enfarte! – tentei.
- Acho que sim… não é bom! – ela – e já respondeu alguma coisa… diureses?
- Bahh! Ainda nada que se veja – confirmou o enfermeiro.
A partir dessa altura passei as rédeas à doutora Lídia e fiquei na mais cómoda posição de assistente. Assistente que apenas assistia e também ajudava, ás vezes, no que fosse preciso. Os minutos começaram a correr rápidos. Ali o pessoal era todo treinado, experiente e era como se fossem vultos esbranquiçados a vogar em volta do velho arfante que cada vez se via menos no meio de tanto soro, fios, cabos e luzes…A doutora Lídia, maestra, começava em frenesim; dois enfermeiros, ágeis, punham, tiravam e espetavam; os auxiliares corriam como autómatos a vozes de comando. As [medidas] fluem quase automáticas, cada vez mais cruentas mas o doente continuava a arfar… não melhora nada. Está cansado!
Agora os minutos correm mesmo rápidos, parecem segundos. Há nos olhares algum desânimo, uma quase certeza. De repente, num desses segundos, ouve-se um beeeeeee contínuo e, logo de seguida o doente acalma, pára de arfar, fica em paz.
- Está parado… - soa uma voz.
Estava parado! Não tinha sido por cansaço, foi o coração que não quis mais. Como que por um click imaginário todos saltamos e iniciamos novas manobras… tubos na garganta, massagem no peito, choques eléctricos, o que mais… mas sempre com a tal certeza nos olhares. Passados dez minutos verdadeiros a certeza era definitiva.
- Chega!… confirma-se o óbito… - soa de novo a voz.
Estava morto.

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