domingo, abril 24, 2005

 

O Emanuel

.
O Emanuel tornou-se uma estrela da televisão.
O Emanuel representa um drama humano e logo toda a história nos é contada, com música de embalar e imagens a condizer.
O Emanuel tem 14 anos, é orfão de mãe, foi abandonado pelo pai e actualmente vive na urgência de um hospital. Em virtude disso, é um miudo com alguns problemas psicológicos (quem não o seria…), mas muito meigo e carinhoso. É interessado e trabalhador: já ajuda na carpintaria do hospital e o seu sonho é ser, um dia, médico. E todos lhe reconhecem esse potencial. O seu futuro está comprometido pelo abandono a que está submetido: nenhuma instituição de apoio à infância o aceita e não se percebe bem porquê!
Esta foi, basicamente, a história que nos foi contada, nas televisões, com música de embalar e imagens pungentes.

O que se segue, é a história do Emanuel que eu conheço.
O Emanuel tem graves problemas psiquiátricos, bem conhecidos desde a mais tenra idade. Não sei exactamente o diagnóstico, que foge bastante da minha área: ou uma esquizófrenia ou um desvio do comportamento/paranóia. Está sujeito a forte medicação psiquiátrica a que se escapa sempre que pode. Tem a curiosa mania de engolir pilhas: todo o tipo de pilhas, de rádio ou de lanterna, pequenas ou grandes, alcalinas ou não-alcalinas… nisso, não é esquisito. No inicio da sua estadia na urgência era conhecido pelo Pilhão. Teve vários internamentos por esse motivo e, por diversas vezes, foi ao Hospital D. Estefânia retirar endoscopicamente as boas das pilhas. Só que, muitas vezes, ia tirar três pilhas a Lisboa e, no caminho de regresso – na ambulância – papava outras quatro. Até que um dia veio um relatório do Hospital a dizer que este tipo de pilhas não constituia risco, que não precisavam de ser removidas, e o Emanuel deixou de ir a Lisboa. E passou a comer menos pilhas.
O Emanuel pode ser violento. Na família, com assistentes sociais, com juízes já houve várias tentativas de agressão, quando as coisas não lhe corriam bem. Há cerca de 1 ano estava internado num Serviço de Pediatria (por causa das pilhas…) e, após algumas semanas de conversações com a família e a assistência social, foi decidida a alta. Um médico, já graduado, calma e pacientemente lá lhe foi explicando que ia ter alta, que ia voltar para casa… O Emanuel não queria e ia ficando agitado. O médico lá dizia que tinha que ser e que ia ter apoio… e o Emanuel mais agitado. De repende grita – Não quero! -, dá um pontapé nos tomates do médico e foge pelo corredor. O agredido cai redondo no chão e, entre dolorosos ais, diz – Amanhã de manhã, vai para casa… aiiii!. E o Emanuel pendurou-se das escadas, aos gritos de que se ia matar.
O Emanuel tem 14 anos. Tem a segunda classe e mal sabe ler ou escrever… não consegue. O Emanuel nunca irá ser médico e, provavelmente, nunca irá ser carpinteiro.
O Emanuel, de facto, é orfão de mãe. O pai casou de novo e tem outros filhos. O pai "aguentou" durante anos a doença do filho mas desde há muito que lhe é impossível manter o Emanuel em casa. Já solicitou, por diversas vezes, o apoio de instituições para o acompanhamento do filho, sem resultado. Agora, fartou-se!
E porque é que o Emanuel vive numa urgência e nenhuma instituição o acolhe?
Porque "parece" existir um parecer de um tribunal, nunca revogado, a ordenar um internamento compulsivo numa instituição psiquiátrica. Mas também existem pareceres de psiquiatras a comprovar que o Emanuel está medicado, estável e não necessita de internamento. Então, e enquanto este embróglio não se resolve, o Emanuel está num limbo. Ninguém o quer:
O pai argumenta não ter condições em casa para o receber.
Nenhuma instituição de apoio à infância o aceita porque existe o tal parecer do tribunal.
Os Serviços de Psiquiatria ou Pedopsiquiatria não o internam porque está estável e bem medicado
Para a Medicina não vai porque tem idade pediátrica.
Na Pediatria não o querem porque tem pelos nas pernas, é maior que as médicas e enfermeiras e já faz insinuações da cariz menos próprio. E ainda lá está o médico que levou o tal pontapé…

Assim, fica na urgência… E serve para as televisões fazerem reportagens humanas. E serve para, à custa dele, se fazerem promoções de imagem de terceiros.

Comments: Enviar um comentário

<< Home