sábado, abril 09, 2005

 

Ontem, depois do almoço

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- Doutor, está a Ivete ao telefone… aquela, da consulta externa!
- Sim… e?
- Pergunta se pode aqui passar, para dar uma palavrinha…
- Diga-lhe que está bem, ainda vou estar aqui mais uma hora.

A Ivete é administrativa na Consulta Externa, ali no edifício ao lado, e é a tia do José. O José esteve internado no nosso Serviço há cerca de quatro meses, com uma crise inicial de Colite Ulcerosa, e a coisa não tinha corrido pelo melhor. A crise foi grave, teve má resposta à terapêutica, iniciou um quadro de megacólon tóxico e acabou no bloco, operado, por uma perfuração intestinal.

- Está aqui a Ivete…
- Diga-lhe que entre!

Eu estava na sala anexa ao secretariado, onde existe uma bancada de computadores e é o local onde fazemos os relatórios dos exames. È também o sítio de pouso do pessoal momentânemente desocupado, para se sentar ou dar dois dedos de conversa. Lá, atrás de um armário, mais escondido de quem passa, até dá para fumar um cigarrito.
A Ivete lá apareceu à porta, pequenina, com aquele aspecto sui-generis, e uma expressão sempre meio preocupada com os males do mundo.

- Posso doutor?
- Sim… entre!
- Ahhh… queria conversar consigo um bocadinho…
- Diga!
- Era particular…
- Ahhh… muito particular?
- Sim!
- Então vamos ali para o gabinete de consulta.

Bom… que quereria? Desde que o José fora operado, e o seguia na consulta, ela aparecia, semana-sim semana-não, para falar de qualquer dúvida ou de um novo sintoma. Mas habitualmente falávamos em qualquer sítio onde nos encontrássemos, ali mesmo, até no corredor… O que é que ela desta vez quereria?

- Então, diga lá…
- Ahhh… ó doutor, eu não queria que ficasse chateado comigo…
- Ora essa.
- Sim, doutror… eu trabalho aqui, sei como isto é! Mas o doutor há-de perceber…
- Vá lá, não há problema… diga lá!

Tanta preparação. Coisa boa não há-de ser… Terá o miúdo piorado? O José tinha tido algumas complicações pós-operatórias, o pequeno coto rectal mantinha uma inflamação importante, que nós não estávamos a resolver bem com os medimentos, e tinha feito uma deiscência da sutura com o aparecimento de um pequeno abcesso pélvico. Mas não… das outras vezes ela abordava-me sempre em qualquer lado, sem pruridos. Queres ver que foi para outro hospital?

- É que não sei se o doutro sabe mas eu tenho um Sindrome de Turner!
- …?
- Sim, diagnosticaram-me um sindrome de Turner quando era pequena…
- Ahh… sim, já me tinham dito. Mas…
- Pois… tenho Sindrome de Turner… – insistia - E conheço bem isto de médicos e hospitais…
- …?

Agora é que a coisa me estava a escapar, mas o que é que eu tinha a ver com o Sindrome de Turner dela… onde é que isto iria dar?

- Então…. E não queria que o doutor ficasse aborrecido, mas fomos à professora Tal em Lisboa.
- Ahhh… sim, não há problema nenhum. E?
- Fomos ouvir a opinião dela, uma vez que o caso do José está difícil…
- Sim Ivete, estes casos são complicados, são difíceis de resolver… é sempre bom ouvir outra opinião. Levaram todos os relatórios e exames?
- Sim doutor, e a professora foi muito simpática.

E a conversa lá continuou, sobre o que a professora tinha opinado ou sugerido e sobre o que iriamos fazer a seguir. Valha a verdade que a professora tal até tinha indicado um tratamento sem nenhuma lógica científica: tinha substituido a mesalazina rectal que nós estavamos a fazer por uma mesalazina oral. Ora como o José tem uma ileostomia, como a mesalazina actua directamente por via intestinal e não por absorção sistémica, esta toma por via oral "nunca" vai atingir o recto. Mas tudo bem, fica assim… pode ser que resulte!
E não cheguei a perceber bem aquela introdução do Sindrome de Turner. Ou foi para justificar o seu acesso facilitado à consulta de outro hospital, ou foi para reforçar a noção de que eu não me podia zangar com ela, tipo: sou deficiente, não posso ser chateada!
Aceitam-se palpites.

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