sábado, abril 16, 2005

 

A prova do bode

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A propósito de um comentário, no blog de um outro médico (temos que pensar seriamente numa espécie de liga da médicosfera!), lembrei-me de um outro exame pelo qual os médicos têm que passar.

Chama-se "prova de comunicação médica" e é feito antes de o médico iniciar a sua actividade clínica. Este exame é bastante recente e eu - sim, já vou sendo velhote nestas coisas - não o fiz. Apareceu há cerca de cinco ou seis anos e foi motivado pela invasão crescente de médicos espanhois e dos países de leste. Estes médicos apareciam nos hospitais, após lhes serem dadas as devidas equivalências, para iniciar a sua actividade e, muitas vezes, não piavam uma palavra de português. Como é fácil de ver, este situação pode dificultar uma boa relação médico-doente.
Como, pela lei comunitária, não se pode descriminar o acesso ao trabalho a ninguém em função da língua, houve que inventar este exame. Como nós, portugueses, somos mais papista que o (defunto) Papa, decidiu-se que a prova deveria ser feita por todos os médicos – incluindo os portugueses – antes de iniciar a sua actividade clínica. Não deixa de ser um bocado aberrante.

A prova é simples e consta de três partes: Na primeira parte, o jovem médico (ou menos jovem, até) tem que entrevistar um doente - em português suficientemente fluente- com o objectivo de colher uma história clínica succinta, e estabelecer uma boa comunicação com o doente. Isto, na presença de um júri. Na segunda parte tem que escrever essa história clínica, também num português suficientemente correcto. Na terceira e última parte, tem que ler o seu relatório aos membros do júri, novamente em bom português, e responder a algumas preguntas/dúvidas sobre esse relatório. O resultado final é apto/não apto.
Entenda-se que o que ali se avalia não são os conhecimentos médicos do candidato mas sim a sua capacidade de comunicar, em termos médicos, com o doente e com outros profissionais. Foi uma forma de contornar de directiva comunitária e poder barrar o acesso a médicos que não soubessem patavina de português.

Já fiz parte de dois júris destes e, no geral, a coisa é uma grande farsa. No caso dos internos gerais portugueses (recém-licenciados) que têm que fazer o exame antes de concorrer a uma especialidade, a coisa é apenas uma conversa de amigos… Pronto, estás apto! No caso dos médicos estrangeiros vê-se de tudo: desde os que se empenharam, que tiveram explicações de português e que se esforçam para falar correctamente; até aos que se estiveram nas tintas e, escrevem e falam, uma coisa qualquer que se parece vagamente com o português.
O questão é que esta prova podia (e devia) ser mais rigorosa. Praticamente não há chumbos e as instruções das ARS vão precisamente nesse sentido: não apertar muito. Ou seja, Portugal no seu melhor: muito legalistas mas ainda mais porreiraços!

Mas a que propósito vem o bode?

Numa dessas provas, há dois ou três anos, lá apareceu uma jovem espanhola das Asturias, nervosa mas esforçada. Calhou-me a mim assistir à entrevista: ela tinha tido explicações de "português médico", durante umas semanas, e até se desenrascava bastante bem. O pior foi quando perguntou ao doente de que tinha morrido o pai. O velhote, um algarvio retinto lá de cima da serra, respondeu num sotaque cerrado: duma marrada dum bode!
Olhei para ela e vi um olhar de pânico. Perguntou mais duas vezes e obteve a mesma resposta. Tentou, também duas ou três vezes, advinhar o motivo do falecimento mas o velhote só abanava a cabeça. Olhou para mim, de olhos húmidos, a gritar ajuda... Pois, claro que lhe dei uma ajudinha. Merecia, e até era bem gira!

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