quinta-feira, junho 30, 2005

 

Quem me bateu?

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A D. Conceição já era conhecida no Serviço desde há muito tempo. Era bastante velha, pequenina e encurvada pelos anos, desconfiada e resmungona pela vida.
Tinha uma esofagite, quase tão velha como ela, que desde há anos tinha formado uma estenose péptica na porção inferior do esófago. De modo que, de tempos a tempos, a dificuldade em engolir apertava e lá vinha ela fazer uma dilatação.
Tinha, também, uma filha quase tão velha como ela. Não sei se também tinha esofagite mas era muito mais chata que a mãe.
Naquele dia, mais uma vez, deitou-se na maca a resmungar - Ó doutor… veja lá se não me faz doer muito!Concerteza que não, D. Conceição…
Naquele dia o Midazolam não funcionou lá muito bem e a D. Conceição ficou naquele limbo flutuante: nem estava a dormir e quietinha, nem acordada e obediente... ficou aparvalhada e agitada.
Introduzido o endoscópio, ainda nem tinha chegado ao estômago, ela começou a estrebuchar… Não valia a pena dizer-lhe nada, não ouvia, e parecia que tinha sete braços, sete fôlegos, sete forças, sei lá. O que eram precisos era reforços para a segurar!
De repente, a D. Arnilde começa ao gritos – Ahhhh… Ahhh… está-me a morder!! Aiiii, está-me a morder!! A D. Arnilde era a auxiliar, tinha deixado escapar o bucal e, na tentativa de o recolocar, ficou com dois dedos dentro da boca.
- Ó D. Conceição… Porte-se bem! Vá lá… Nisto, a D. Arnilde consegue tirar os dedos – Já está… safa!! – rejubilou – Ela vai morder o aparelho... – soou a enfermeira.
Num impulso, dei-lhe uma boa palmada na testa… Ela abriu a boca e eu saquei o endoscópio num ápice. A D. Conceição sentou-se na maca que nem uma mola, pequenina, de olhos esbugalhados e expressão furiosa.
- Quem é me bateu? Quem…?
- Bater, D. Conceição?? Ora essa…

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