domingo, agosto 21, 2005

 

A força da experiência

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A consulta estava mesmo a acabar, finalmente... faltava só um ou dois doentes. Tinha sido uma tarde longa e penosa, como é habitual após as férias: não sei se é por falta de ritmo, se é da moleza do calor ou se é por marcarem mais doentes, a consulta parece que se arrasta infindavelmente. Parece, não... arrasta-se mesmo!
A consulta estava mesmo quase a acabar quando uma enfermeira bateu à porta, entrou e disse - A doutora Rute pede para ir à sala da endoscopia... - e eu lá fui. A Rute é uma colega mais nova que, nesse dia, estava de serviço à urgência. Se me tinha chamado, é porque estava com alguma dificuldade na endoscopia - talvez uma hemorragia digestiva - e, enquanto no hospital, damos sempre uma ajuda quando solicitada.
Afinal a situação não era muito grave, nem emergente... era um impacto alimentar, ou seja, um rolhão de comida preso no esófago, que nem vai para baixo nem para cima, e impede o doente de engolir. Isto acontece por diversos motivos mas, mais comumente, aparece em idosos que mastigam com mais dificuldade, que engolem uns bocados de comida maiores que o habitual e que, muitas vezes, já têm algum pequeno aperto no esófago. O bocado de comida pára, outros juntam-se-lhe e, com líquido e saliva, formam um bloco espesso que só sai com alguma ajuda.
Este doente era novo mas a situação estava dificil de resolver. Para além da sua pouca colaboração - arrotava e estrebuchava constantemente - a massa alimentar apresentava um quantidade surprendente de liquido e um elevado número de umas coisinhas castanhas que pareciam caroços de azeitona. O líquido não se conseguia aspirar - entupia o endoscópio - e dificultava a visão. Os "caroços de azeitona" atrapalhavam os movimentos da pinça que tentava desfazer e remover a massa alimentar.
Eu, baseado na experiência nestas situações, lá ia dando algumas indicações à Rute... "faz assim, tenta por ali, abre a pinça assado"... É quase sempre assim e não existe uma maneira standard de remover um impacto alimentar: vai-se tentando, com diferentes pinças, de diferentes maneiras, até desentupir a coisa. Mas, neste caso, nada... a comida continuva ali, impávida, e o doente ia ficando mais agitado. Até que a Rute disse - Queres tu tentar? - É também habitual: após o mais novo não conseguir, vai o mais velho... e tem que conseguir!
Calmamente, calcei as luvas, peguei no endoscópio, olhei o panorama e pedi a pinça "tal". Nisto, o doente estrebucha com mais força e, com um ploff! quase audível, a comida cai para o estômago. Já está! - disse eu, perante o espanto da Rute. É assim, a experiência conta muito... nem foi preciso fazer nada: o impacto assustou-se e fugiu para o estômago, sabia que não lhe ia dar hipóteses!
E voltei à consulta que estava quase a acabar... faltava só um doente.

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