domingo, outubro 02, 2005

 

A vizinha

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Era noite cerrada, de madrugada mesmo e eu dormia e sonhava com qualquer coisa boa, de certeza. Lá longe, alguém começou a bater à porta - bum! bum! bum! - ineterruptamente e cada vez mais alto - BUM! BUM! BUM!. No meio do sonho, fingia que não ouvia e esperava que alguém fosse antender - Vai lá... está alguém a bater à porta! - Virei-me para o outro lado e continuei a sonhar... ou melhor, agora já fingia que sonhava - Vai lá... parece que está alguém a gritar!
Levantei-me cambaleante e desci as escadas. O matraquear na porta não acabava e, de facto, gritavam - Ajudem-me... Ajudem-me... a minha mulher...! - Abri a porta e era o vizinho do 3ºD. Estava visivelmente descontrolado, olhos desorbitados, falava, gesticulava e não se percebia nada.
- Calma... tenha calma e conte lá!
- A minha mulher.... a minha mulher...
- Sim...
- Teve uma trombose...
- Uma trombose?
- Sim, está toda apanhada... não se consegue mexer!
Ora esta, não devia ter uma trombose... Eram novos - pelo menos da minha idade - e aparentemente saudáveis. Não, não devia ter uma trombose! Vesti mais qualquer coisa e fomos os dois a casa dele.
Entrei no quarto e lá estava ela... Estava completamente esticada na cama, pescoço, tronco, perna e pés, como que inteiriçada. Só os braços estavam flectidos sobre o peito com as mão firmemente cerradas. A face olhava, ligeiramente, para trás e para cima, e mantinha a boca semi-aberta num permanente esgar de medo e surpresa. De dentes cerrados, respirava ruidosamente e balbuciava qualquer coisa que não conseguia perceber. Não, decididamente não tinha uma trombose.
- Olá... - e sentei-me na cama - Então diga lá o que é que sente!
- Não consigo falar...
Peguei-lhe no braço e tentei-o esticar... nada: tinha uma tensão e rigidez surpreendentes.
- Não consegue mexer o braço?
- Não... não consigo mexer nada!
- E sente eu a mexer-lhe no braço?
- Não... só sinto formigueiros!
- E a mão?... Tente lá abir a mão!
- Não consigo!
O marido, sempre a espreitar na soleira da porta, disse ai e começou a chorar. Ela também soltou as lágrimas e respiração ficou mais ruidosa.
- Calma... Vamos com calma e já resolvemos isto!
- ...
- Foi a primeira vez que isto aconteceu?
- Sim!
- Tem algum problema de saúde?
- ...
- Anda a tomar alguns medicamentos?
- Ahhh... tem andado com uns problemas de nervos, anda a tomar uns medicamentos!
- Bom, acho que não tem nenhuma trombose... isto é só um efeito do sistema nervoso.
- ...
Pedi para ver os medicamentos que tomava e, a custo, lá lhe demos uma Serenal 30. Aos poucos fui-lhe mobilizando os membros, a espasticidade foi passando e a respiração normalizando. Fui sondando se estava a fazer a medicação certa, se tinha tido algum aborrecimento no emprego... ou familiar, se tinha ocorrido algo fora do comum nesse dia, mas nada: o marido retraia-se e ela não respondia a nada. Passados dez minutos já estava, na aparência, completamente bem.
- Ok... está tudo bem. A tensão e o pulso estão normais, não tem febre, a mobilidade dos membros voltou ao normal.
- ...
- Eu penso que isto foi uma crise de ansiedade.
- ...
Continuavam estranhamente calados: não pareciam estar aliviados, antes muito constrangidos. Agradeceram e mostraram querer ver-se livres de mim, rapidamente. Aconselhei a consultar o médico de familia no dia seguinte e despedi-me. Voltei à cama e ao sonho que tinha deixado para trás.

Continuei a vê-los quase todos os dias... ainda perguntei, da primeira vez, se estava tudo bem e disseram que sim, que estava tudo bem.
E nunca mais falaram no assunto. Talvez tenham razão, existem coisas que não se contam a um simples vizinho, mesmo que seja o médico que por lá passou numa situação de aflição!

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