sexta-feira, julho 28, 2006

 

Não foi de propósito, juro!

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Naquele dia - pelo menos a mim pareceu-me - ele deve ter achado que tudo lhe correu mal, da pior maneira possível. Até deve ter achado que nós fizemos alguma coisa de propósito, só para o castigar, mas não… Não foi de propósito, juro!

Era já a terceira ou quarta vez que vinha à consulta, tudo por causa de uma diarreia que não se queria ir embora. A diarreia até nem era grande coisa, não tinha mais que quatro dejecções diárias, sem dor abdominal, que não lhe causavam grande transtorno nas suas actividades. Mas parecia-me sempre demasiado ansioso e preocupado… sim, demasiada preocupação para tão pequeno mal. Já tinha feito vários exames, todos normais, e nós, como de costume, lá lhe explicámos que devia ser uma alteração funcional que, com alguma dieta e medicação, havia de voltar ao normal.
E nesse dia lá estava ele, ansioso e preocupado como sempre, a dizer que pouco ou nada tinha melhorado. Nesse dia, deviamos rever umas análises mas ele tinha-se esquecido de as levantar no laboratório e assim, enquanto o interno falava com ele, eu fui ao computador procurar e imprimir as tais análises… Foi aí que descobri tudo. "Grande sacana, não nos disse nada!", pensei eu.
Voltei, sentei-me e comecei:
- Ora bem… didga-me lá, você esteve doente há três anos, não foi?
- Ahhh… sim, estive internado alguns dias.
- Foi porquê?
- Disseram-me que foi uma encefalite, ligeira… recuperei totalmente.
- Mas depois veio a algumas consultas aqui ao hospital, não foi?
- Ahhh…sim, a algumas… durante algum tempo…
- E depois, deixou as consultas?
- Sim, fui seguido algum tempo e estava tudo bem!
- Estava? Mas foi o médico que disse que podia deixar de vir?
- Ahhh… já não me recordo.
- Mas disse-lhe o qual era o seu problema, não disse?
- …
- …
- Era um vírus…
- Bem… acho que sabe que não pode dizer era!
- Ai, doutor... vai voltar tudo outra vez!
- …
- Essa era uma fase da minha vida em que tinha posto um ponto final…

Mas não podia: ele era VIH positivo, desde há mais de três anos, tinha abandonado por completo a consulta, o tratamento e, aparentemente, fazia uma negação activa de situação. Tinha-nos omitido toda a situação e, como os processos da Consulta de Imunodeficência são arquivados em separado, o caso tinha-nos escapado por completo. Depois lá foi falando dessa fase negra da vida dela, que ele não queria que voltasse, do choque ao descobrir que estava infectado, do afastamento do parceiro, das dificuldades de relacionamento com a médica da consulta, dos problemas em ser reconhecido por empregados seus, etc, etc…
Explicámos que esta diarreia actual não estava obrigatoriamente relacionada com o vírus mas que tinha - para bem dele - que voltar à consulta, aos tratamentos. Aos poucos, renitente, lá foi aceitando…
Quando saiu, o olhar estava triste, cabisbaixo, quase derrotado. Como disse, naquela tarde, o fardo que tinha atirado para trás das costas, tinha voltado. E pareceu-me ver também alguma raiva e revolta… um olhar de acusação, como quem diz: "vocês gozaram comigo!"

Tudo isto porque, pouco antes de ele entrar para a consulta, tinha ocorrido uma daquelas situações que não são raras nos hospitais.
No gabinete em frente estava um colega meu, na consulta de proctologia, e o diálogo com a enfermeira foi mais ou menos assim:
- Pode chamar o senhor Manuel Silva…
- Silva?
- Sim, é um homem de óculos que está ali sentado.
- Chamo já…
A enfermeira saiu e viu o homem de óculos, sentado.
- Senhor Silva, pode entar!
E lá entrou o meu senhor Silva - não o Silva dele. Puseram-no em posição genu-peitoral, as calças foram abaixo e, após um breve "então isso está a melhorar?" enfiaram-lhe com o anuscópio pelo rabo acima!
É evidente que, já depois, o meu colega topou que aquilo não batia certo, mas não se descoseu: "Está tudo bem, agora espera um pouco e o meu colega já o vai consultar". Ele, aparentemente, também não estranhou e não protestou, não disse nada. Mas, quando saiu da consulta, acho que tinha alguma revolta e acusação no olhar, com se dissesse: "vocês fizeram isto de propósito!"
Não foi de propósito, juro!

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