quinta-feira, dezembro 14, 2006

 

O Zé Custódio

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O Zé Custódio entrou no nosso Serviço aí há dois ou três meses. Era um negro grande, calado, de sorriso permanente, e com aquela idade meio-indefinida que todos os homens negros costumam aparentar desde que deixam de ser novos. Tinha, afinal, cinquenta e poucos anos... mas olhando para ele era impossível dizê-lo, dizer que tinha trinta e tal ou sessenta e muitos, só se podia dizer que devia ter sido um homem possante quando novo.
Só que também tinha o "fígado desfeito", como costumam dizer, uma cirrose hepática já bem avançada, ganha à custa de muito copo de vinho mal bebido. Entrou já com muito mau estado geral, muito ictérico, com ascite avantajada e, logo na primeira noite, teve vários episódios de convulsões por causa da normal abstinência. Controlada a situação inicial e feitos os diagnósticos do costume (Cirrose Hepática + Hepatite Aguda Alcoólica), inciaram-se as medidas terapêuticas: dieta hipecalórica, soros, vitaminas, diuréticos e o que mais for necessário... Mas o Zé Custódio melhorava pouco - ou nem melhorava nada! A icterícia mantinha-se, as diureses não aumentavam e, quase sem darmos conta, afundou-se num estado estuporoso meio esquisito: sonolento, apático, com um mínimo de comunicação conosco... mas sempre com aquele sorriso meio-manhoso, meuio-irónico, No meio dos exames e contra-exames, saltou uma hemocultura positiva para Escherichia Coli. Cá está! - pensámos nós - Tem uma sépsis, por causa de uma infecção urinária ou respiratória, e é isso que o está a afundar! E assim iniciámos antibióticos, confiantes... Mas ele nada, nada melhor, talvez até pior porque o rim começou a falhar e a creatinina a subir. Vai de dar albumina, mais diuréticos e acertar balanços hídricos. E esperar...
A espera valeu a pena, parecia que estava a arribar... pelo menos as análises e os registos. Mas ele, apesar de mais desperto, continuava apático e praticamente sem falar. Num dia, estavamos nós de volta dele, a discutir possíveis exames e opções de tratamento, pareceu-me que ele nos observava pelo canto do olho. Sim, estava a observar-nos de certeza, com o tal sorriso irónico do costume, com se soubesse - como se tivesse a certeza! - o que aquilo ia dar e estivesse a gozar com os nossos esforços. De certeza, o sacana...
Quando iamos para sair, fiquei para trás... aproximei dele, bati-lhe no braço e chamei - Zé!... Ehh, Zé! Como se sente hoje? - E ele nada! Nada... só o mesmo sorriso! Estava já para sair quando me pareceu que ele queria dizer qualquer coisa. Aproximei-me novamente, debrucei-me e quase encostei a orelha à boca. E tenho a certeza - posso-vos garantir! - que o ouvi: Eu quero morrer, doutor! Deixe-me morrer...
Nesse dia, depois no Serviço, no carro, na estrada, em casa, dei por mim a pensar naquilo. Era isso mesmo, ele queria morrer... a apatia, a sonolência, o sorriso malandro... ele queria morrer, estava a fazer tudo de propósito, o sacana! No dia seguinte cheguei cedo e, ainda antes das higienes, entrei mansinho no quarto do Zé Custódio, abeirei-me da cama e cheguei a boca à orelha: Tás tramado comigo, Zé... nas minhas camas ninguém morre. Não te vou deixar morrer!
Saí, de peito cheio, enquanto olhava para ele e pareceu-me - garanto-vos que me pareceu! - que o sorriso lhe tinha desaparecido da cara. Reunimo-nos outra vez e decidimos muito: vamos acertar todas as medicações e soros; ver cálcios, fósforos e magnésios... e corrigir tudo; falar com a dietista e pô-lo a comer - que não come quase nada - e a suplementos calóricos; e falar com a fisioterapia que as massas musculares estão a desparecer; e carregar na lactulose, que se fôr encefalopatia hepática ele há-de acordar! Assim, foi... em dois ou três dias melhorou a olhos vistos, ficou mais desperto, articulava monossílabos e colaborava na alimentação. Até as análises não pioraram... Só o sorriso desapareceu e o Zé Custódio parecia mais triste, mais velho.
Durante esse dias reparei que sabia muito pouco dele - ou quase nada! - não sabia onde morava nem o que fazia. Família, nada! Também nunca lhe vi visitas, mas disseram-me que tinha tido algumas no início: os donos do tasquinha onde se abastecia, e onde parece que passava os dias, vieram vê-lo algumas vezes... e o filho deles fez-lhe dois desenhos infantis que estiveram todo o tempo pregados na cabeceira da cama.
Mas um dia piorou de novo... apareceu febre e afundou-se mais uma vez naquela sonolência apática. Quando me contaram, fui logo espreita-lo e lá estava - juro que estava! - o sorriso de novo. Mais exames, análises - surge uma Pseudomona na urina que se tratou com novos antibióticos - e o Zé Custódio na mesma... sonolento, confuso, sem reacção, mas de sorriso aberto. Isto não é nada afasia... é mutismo, porra! - disse eu, já de todo, enquanto pensavamos em qualquer coisa - O gajo está a fazer de propósito! Dois ou três dias depois teve uma hemorragia digestiva alta, o rim voltou a fraquejar e a bilirrubina pulou para mais de vinte. O sorriso dele já era quase uma gargalhada. Ouvia-se!
Um dia, cinquenta e quatro dias depois de ter entrado no Serviço, o Zé Custódio morreu. Às sete da manhã, como é próprio dos hospitais. Não o vi, mas tenho a certeza - tenho! - que o sorriso estava lá! O Zé Custódio quis morrer, o grande sacana...

PP: Uma semana depois, o Zé Custódio voltou. O corpo, finalmente, tinha sido reclamado por uns familiares de Lisboa mas haviam um probleminha. Afinal não se chamava Zé Custódio, mas sim João Custódio! E os tipos da agência funerária vieram ter conosco para mudar o certificado de óbito mas não se pode... têm que mudar a identificação no registo do hospital, o que pode não ser nada fácil. Espero bem que já tenham resolvido a coisa...

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