terça-feira, janeiro 02, 2007

 

Custa-me tanto vê-lo assim

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Custa-me vê-lo assim.
Pouco sai, passa os dias sentado à mesa, perto da televisão, preso aquele atilho que vem do tecto, que sai do candeeiro, como se fosse uma rédea curta que o mantém preso aquela mesa. Quando sai, muito pouco, volta rapidamente… tão rápido quanto consegue subir os três andares, a parar em todos os patamares, ofegante, suado, mas ansioso por chegar, chegar cá a cima ao atilho, ao tubinho do oxigénio que desce do candeeiro e o mantém preso aquela mesa.
Custa-me vê-lo assim, porque o conheci antes.
Quando era mais novo, menos doente. Quando falava de alto e pensava que mandava no mundo, em todos nós. Quando só saía e nunca estava em casa, quando não ouvia ninguém nem via televisão. Quando nunca deixou de beber, nem de fumar três maços de tabaco, sentindo-se imortal mesmo quando já se cansava a subir os três andares.
Custa-me vê-lo assim, preso naquela mesa.
Com o tubo enfiado no nariz, em volta da cabeça, qual açaime e rédea curta. Sempre com o oxigénio a correr, sempre preocupado que o oxigénio não corra, sempre a tomar medicamentos, a sorver as bombas como quem sorve um bocado de vida, só mais um bocadinho. Sentado, ali na mesa, sempre a ver televisão, as novelas, sempre preocupado com os enredos.
Custa-me vê-lo assim, a ver novelas.
Sentado na mesa, preso ao tecto, preso ao oxigénio, a resmungar ou a chorar com as novelas. E ainda a querer mandar, já só na sala, só na mesa, só no oxigénio, e sem poder. Sempre sentado na mesa, a sorver o oxigénio e a engolir a comida, quase sempre a comer, a pedir mais comida. E fumar, claro, sempre a fumar. Menos que dantes, talvez dois maços, e a pedir-me mais um cigarro.
Custa-me vê-lo assim, a morrer.
A morrer devagarinho, a matar-se devagarinho. A sorver o oxigénio, a fumar mais um cigarrinho. Sentado à mesa, a resmungar com a novela, a pedir mais comida. Sentado à mesa, com medo. Com medo de morrer.
Custa-me tanto vê-lo assim.

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