quinta-feira, janeiro 25, 2007

 

Eu não lhe disse?

.
Fui beber um café a bar, logo de manhãzinha, e depois passei pela urgência para falar com a Paula, sobre qualquer coisa de que já não me lembro.
Quando ia, reparei naquela cara deitada numa maca e pareceu-me conhecê-la. Sim, quase de certeza que conhecia aquela cara mas, deitada numa maca, a comer o pequeno-almoço, fiquei sem saber a quem pertencia. Quando vinha, olhou para mim, fixou-me bem, sorriu e tive a certeza.
- Bom dia, doutor!
- Bom dia…
- Eu não lhe dizia?
- …
- Que tinha que ser internado!
Foi aí que se fez luz, era o senhor Aquiles. Estava muito mais magro, de cabelo mais branco, desbarbeado e tremiam-lhe as mão deitado na maca. Estava muito diferente, quase impossível de reconhecer. O senhor Aquiles andou na consulta, durante algum tempo, há dois ou três anos e só lá foi parar porque fui enganado - Não me queres ver um doente na tua consulta! – disse-me um dia um psiquiatra – Ele é um bocado hipocondríaco e eu acho que ele não tem nada… - continuou - … mas, se calhar, podia fazer alguns exames para ver se acalma. Não liguei muito e disse que sim. Parvo!
- Pois dizia…
- Estou aqui há dois dias… à espera de vaga!
- E porquê?
- Não vê? Estes tremores…
Estava na fila das macas dos doentes psiquiátricos, dos doentes que aguardam qualquer coisa que ninguém sabe bem o que é. Voltei à saleta do pessoal e perguntei à Paula pelo senhor Aquiles – Não sei, não estou com os homens! – respondeu – Pergunta à Eva. Perguntei à Eva que disse – Não sei bem… É da psiquiatria… está á espera de qualquer coisa! Confirmava-se.
- Então as melhoras, senhor Aquiles!
- Obrigado doutor… gostei de vê-lo!
- Eu também.
- Eu bem lhe disse que precisava de ser internado.

O senhor Aquiles não era um bocado hipocondríaco, todo ele era hipocondria. Logo na primeira consulta arrependi-me do meu assentimento despreocupado ao pedido do psiquiatra [na segunda consulta telefonei-lhe a pedir socorro] e comecei a maldizer a minha vida.
De entre as muitas doenças que tinha, só o deixei queixar-se de três ou quatro: as que tinham mais relação com a tripa e anexos. Das outras, proibi-o terminantemente de falar.
Tinha SIDA. Uma dia tinha ido de propósito a Lisboa para conviver com uma menina e, ainda no caminho de volta, já se tinha arrependido. Apareceu-lhe uma mancha na virilha, uma grande fraqueza e teve a certeza: tinha SIDA. Separou-se da mulher e foi aos médicos. Fez duas ou três serologias que foram negativas. Cravou um WesternBlot, que foi negativo. Mas o WesternBlot pode ser falso negativo em x%. Tenho SIDA! – dizia-me. Na altura queixava-se de uns ardores não sei onde e pediu-me mais um teste. Disse-lhe que não.
Tinha uma greta na língua. De facto, tinha… o sulco mediano da língua era profundo e esboçava uma laceração. Mas, dizia ele, aumentava de dia para dia, de mês para mês e ia ficar com a língua bifurcada. Já tinha feito análise, exames, biopsias, tratamento e nada, só cada vez pior. Durante o tempo que lá andou, mostrou-me todas as vezes a língua - Está a ver? Está quase a separar-se! - e pareceu-me sempre na mesma. E pior, tinha amargos de boca, saliva ácida e pústulas na garganta.
Tinha os intestinos putrefactos. Estavam putrefactos desde que tinha SIDA e sabia-o pelos barulhos que faziam, pelos cheiros que exalavam [pela boca e ânus, claro!] e pelas diarreias que tinha. Também já tinha feito exames, na clínica de St. Luzia – Anestesiaram-me durante dois dias e fizeram-me todos os exames! Não tinham mostrado nada mas era impossível… com certeza que não tinham sido os exames certos. Pediu-me para lhe fazer outro estudo completo do aparelho digestivo e eu disse-lhe que não, que só lhe pedia umas análises.
Tinha incompetência do ânus. Claro que não havia nenhuma incontinência fecal ou de gases, nem a mínima escorrência nocturna, era só o tal cheiro dos intestinos putrefactos que não parava. Fiz-lhe um toque, uma anuscopia e disse-lhe que estava tudo bem, que o esfíncter me parecia estar a funcionar em pleno. Não acreditou. Sugeri que fosse ao Porto fazer uma manometria, mas não foi porque estava muito doente.
Um dia declarei-me incapaz – Senhor Aquiles, não sei o que tem nem sou capaz de tratá-lo! - Ele não se admirou e perguntou que colega é que eu lhe recomendava – Acho que o melhor é voltar ao psiquiatra!

Confesso que, depois de me despedir, tive uma enorme vontade de lhe perguntar:
- E então senhor Aquiles, a língua já se separou?

Comments: Enviar um comentário

<< Home