segunda-feira, março 12, 2007

 

Ainda é muito novo

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Tudo nele é correcto e ordenado, tudo nele transpira competência, demasiada talvez, e tudo para ele obedece aquela lógica exacta das coisa certas. Fala de uma forma pausada e pensada, a dicção é clara e perfeita, e coloca todo o enfâse nos pontos chave do discurso.
É assertivo, como se gosta agora de dizer... Acha sempre que consegue moblizar o melhor de cada um de nós, até dos doentes. É muito novo digo eu, ingénuo até, e ainda não sabe que há vontades que nunca se mobilizam... nem nos doentes!

A doente - uma velhota meio demênciada, com mais de 80 anos - entrou na sala deitada na maca, ainda pouco agitada mas já de olho desconfiado. Eu encostei-me na bancada, cá bem atrás, e fingi que tirava qualquer coisa de uma unha. Ele, depois de verificar a luz e a aspiração, voltou-se para a maca, pronto para a enfrentar e para mostrar serviço.
- Dona Eva, vamos-lhe fazer uma endoscopia para observar o seu estômago, porque...
- Não quero! Não quero!
- Dona Eva, é muito importante... A senhora teve uma hemorragia muito grave e só a endoscopia pode detectar...
- Não quero fazer a porra do exame!
- Dona Eva, não vai custar nada... Demora apenas uns minutos e é extremamente importante...
- Já lhe disse que não quero!
- Bem, vamos primeiro colocar-lhe um spray anestésico na garganta que lhe vai....
- Não!!
- Abra lá a sua boca, dona Eva, não custa nada... O spray sabe bem e vai proteger...
- Ahhh cabrão, que me queres envenenar!
- Ó dona Eva, por favor... Acalme-se, esteja calma... Já lhe disse que não lhe vamos fazer mal.
- Aiiii.... O que é isto?
- O quê, dona Eva
- O que é esta merda que me está a apertar o braço?
- É do aparelho de medir a tensão, dona Eva... Para termos a certeza que está tudo bem consigo.
- Tire-me isto! Tire-me isto!
- Acalme-se, dona Eva, está tudo bem... Vamos já começar
- Não! Tire-me esta merda!
- Ó dona Eva, então? É importante isso estar aí, vá lá... não custa nada!
- Ai não? Então ponha-a a apertar a sua gaita!

Aí, ele embatucou. Com o endoscópio tristemente pendurado, olhou para mim à procura de uma resposta. Fingi que não me ria e disse-lhe:
- Ó Vitor, vê lá se não ficas aí na conversa o dia todo... Enfia-lhe um Midazolam e faz a endoscopia!

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