sexta-feira, outubro 31, 2003

 

Não era preciso nenhum médico (4)

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Dezembro

Não está um ano nada bom, isto metereologicamente falando. Está um frio húmido e desagradável, que me entorpece e faz dores de cabeça. Ainda por cima no Algarve, onde nunca cheira a Natal.
Cheguei tarde ao consultório, já escurecia a tardinha. Ao subir as escada vejo-o na penumbra carregada da sala de espera. Estava num canto, encolhido, já nem parecia triste mas sim assustado. Definitivamente assustado! Foi nessa altura que tive a certeza, o Sr. Manuel tinha qualquer coisa grave… porra! Virou o olhar para mim.. estremeci… e desviei os olhos. Porra, porra!
Sentei-me na cadeira e olhei para o cubículo. Estava escuro, não havia sol. A paredes estavam negras, sujas e bafientas. O catre continuava ali, imóvel, imprestável, coberto por um papel sebento e a pia era patética, rachada de alto a baixo.
Entrou e sentou-se.
- …
- Já perdi oito quilos. – confirmou.
- Depois de amanhã vai ter comigo ao Hospital! – confirmei.
Nesse dia não me lembro da viagem, mas já era noite cerrada e não devo ter metido qualquer mudança, ou ouvido qualquer música. Levo a consciência de arrasto.
No dia combinado lá estava ele, já só o vi deitado para a endoscopia. Enquanto avançava fulgurante pelo longo e direito esófago ainda esperancei, talvez… mas entro no estômago e lá estava, ali, logo de frente como que a rir-se de mim. Um cancro de todo o tamanho!
Expliquei, ou melhor, meio-expliquei – Tem uma úlcera no estômago, grande, não gostei nada dela… tem que ser operado.
- … Se tem que ser… também não estava a melhorar nada!
Falei com o cirurgião, programam-se TACs e outros preparativos. Estava tudo bem, operável. Afiam-se as facas e trata-se na primeira semana de Janeiro.

segunda-feira, outubro 27, 2003

 

Não era preciso nenhum médico (3)

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Novembro

O tempo ficou definitivamente frio, quase de repente. Hoje é outro dia de descanso, só dois doentes marcados e vim uma hora mais cedo. Mas o cubículo já não é o mesmo. Já não há luz nenhuma a entrar pelas janelas, não há calor, aconchego. As paredes estão francamente sujas, num branco baço e desbotado, de certeza pegajosas ao toque. A marqueza perdeu toda a altivez, não passa de uma velha maca de consultório a dever uns bons pares de anos à reforma. E o lavatório?… está aqui completamente deslocado, nem na casa de banho. Com uma marreta na mão fazia-se um bom trabalho!
Tenho frio… vamos lá aquecer o ar condicionado.
- Está aí o Sr. Manuel – disse a mesma voz do auscultador.
Quando entrou vinha muito mais pequeno, mais atarracado e mais triste quo o habitual. Claramente não estava melhor. Com ele vinha a mulher, que eu nunca tinha visto mas só podia ser a mulher. Era mais pequena, mais atarracada e mais triste quo o Sr. Manuel. Quase sem palavras sentaram-se- num repente e pousaram o pardo envelope de radiografias na secretária.
- E então, como vai?… o estômago melhorou? – esperando não me repetir.
Pensei que fosse ela a responder mas surpreendentemente revelou-se muda.
- Na mesma , doutor,… na mesma! – desanimou.
- Não pode ser!… não melhorou nada? – animei.
- Quase nada… alguns dias ando melhor mas depois volta a dor… quando como é pior… quase não como! Acho que isto não está nada bom!- terminou.
- …
- e já perdi cinco quilos. – arrematou.
Olhei para ele com o ar pensativo de doutor. Continuava a ver um homem triste, calado, cansado. Assustado? Já não dizia mais nada, e a mulher em apoio total. De facto não conhecia nada deste doente. Algumas perguntas, sim, não, não… nada mais lhe saía.
Reobservação inalterada, exames normais, novo veredicto?
Decidi falar, puxar por ele e tentar perceber um pouco melhor a pessoa triste que se sentava à minha frente e até agora só me telegrafara algumas queixas mais ou menos óbvias. Triste sempre fora, como o pai e o avô antes do pai, mas agora andava mais. Pudera, andava preocupado e sem saúde… O trabalho na indústria conserveira andava mal e os tempos livres ocupados como servente de pedreiro mal andavam. Claro, assim doente..! E a reforma ainda longe… longe… e miserável de certeza. Enfim uma vida que não queria para ninguém.
Aí está! Consegui algo?
- Sr. Manuel, confesso que queria e gostava que estivesse melhor. Essa dor que não passa deixa-me preocupado… - inicio.
- …
- mas já fizemos todos os exames, mesmo agora a ecografia e radiografia do estômago estão normalissimos. As análises, óptimas… quando o observo não encontro nada. Podemos repetir a endoscopia mas acho que não vale a pena… não irá mostrar mais nada… - avanço.
- …
- Mas… parece-me triste.. abatido. Deprimido como nós dizemos. Muitas vezes é a depressão, que é causada pela doença que não deixa a doença melhorar… - desenvolvo.
- Não sei… - finalmente.
- Vamos tentar uma última hipótese… muda-se o medicamento para o estômago e começamos outro novo, que actua no cérebro e também no estômago. – proponho.
- O doutor é que sabe…- faltava esta.
- Só sei o que posso…Um mês! Se continuar assim, temos que repetir tudo…vamos para o hospital, fazemos endoscopia, TAC, tudo! - concluo, esperançado.
- Pode ser… mas não sei…
A esperança desvanece-se, apenas um fugaz brilho nos olhos, mas a tristeza prevalece.
- Doutor!! – Ahhhh… sempre fala – Tem que fazer qualquer coisa..ele assim não está bem! Estou farta de o ver sentado a mesa, a olhar prá comida, com aquela cara…
Olhei a mulher e tentei um sorriso calmo e seguro mas apenas recebi, de volta, um desânimo frio que me assustou.
A tarde clareou e está um sol pálido de inverno. Vou novamente atrás dele, para casa, para longe. Volto à quinta calma, Sultans of Swing suaves… mas não fecho os olhos, a consciência ganhava peso. Talvez devesse ouvir o Requiem.

segunda-feira, outubro 20, 2003

 

Não era preciso nenhum médico (2)

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Outubro

Já tinha arrefecido. A luz já não era clara, não era luminosa, antes baça e ténue. Já nem batia na janela do cubículo. As paredes não estavam tão brancas, tão limpas como pareciam. Olhando bem, os cantos junto ao tecto estão encardidos. A marquesa estava meio desmazelada, viam-se mossas nas pernas esguias e o lençol jazia às três pancadas. O esguio mordomo parecia-me cada vez mais kitch e deslocado.
Nesse dia não havia tempo para remansos. Cinco doentes marcados e às seis e meia devia estar à porta do infantário!
Chegou o Sr. Manuel
- Como vai? Então esse estômago… está melhor? – quis afirmar.
- Que nada! A dor melhorou um pouco, não tenho azia… mas já perdi três quilos desde que isto tudo começou – atirou.
- Hum… -divergi – e as análises?
Vi os resultados… tudo normal. Melhorou, pensava, mas a dor, a tal dor que o levou ao médico, continua. Mas pode ser refluxo, atípico e com dispepsia… mas refluxo. E tem a endoscopia. E parece bem. Triste, sim… mas bem. Novo veredicto.
- Às vezes é assim! Vamos manter o tratamento mais um mês e acrescentar um outro – decidi.
- … - calou.
- De qualquer modo vamos ficar mais descansados e fazer uma ecografia e um outro tipo de exame ao estômago – assentei.
- Pois… é melhor! – aliviado?
Nesse dia ainda voltei descansado a Faro. Fui a correr sem ver o sol ocidental, quartas e quintas nervosas, Wish You Were Here médio e agarrado ao telemovel, prevendo cenas e trombas pela chegada tardia ao infantário… Mas a consciência continuava a salvo.

sábado, outubro 11, 2003

 

Não era preciso nenhum médico (1)

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Setembro

Estava numa daquelas tardes quentes e mornas, sentado no consultório, sem ninguém à frente. O habitual, pensava eu mas não era coisa que me causasse angústia. Gostava de estar ali sentado sem fazer rigorosamente nada, a fingir que olhava o tecto mas fixando um ponto qualquer muito além deste, algures perto das núvens. Às vezes quase atingia o grau zero da actividade cerebral, outras ficava ficava a flutuar nesse limbo indefinido entra a realidade e o sonho. Depois da correria desorientada da manhã hospitalar estes eram tempos únicos.

O consultório não era um consultório, era um cubículo arremedado de ares sanitários. Tinha um ar limpo, asséptico e desinfectado, como convém, mas não servia para mais nada que não fossem umas perguntas e respostas em íntima privacidade. Havia uma grande janela com um daqueles estores corridos de ripas em politileno, ou o que seja, que deixava entrar a luz clara de Verão e inundava mansamente o ar. As quatro paredes ficavam brancas, de um branco puro que chegava a ferir o olhar. Na minha frente a marquesa e o lavatório… que conjunto! A primeira já um pouco descaída, talvez mesmo já na rampa descendente, mas imponente, macissa e acolhedora. O lençol, também branco, e a protecção de papel dão-lhe uma ar até distinto, só dela. É ali que os pessoas procuram o último refúgio, onde verdadeiramente se sentem doentes. O lavatório, coitado! Cor de rosa, com torneados, de pé alto e espigado a sair do chão e torneiras meio babonas… o que é que fazia ali no cubículo médico? Era como que um mordomo deslocado ou desfocado da marquesa.

Toca o telefone. – Chegou o doente! – disse a voz.
Minutos depois entra o doente no consultório. Era um homem de sessenta e tal anos, baixo, bastante baixo e atarracado, de feições grossas e marcadas pela vida. Tinha movimentos lentos, pausados e sentou-se só depois da licença. Via-se que era um calado, mas também não era um observador, tinha um olhar ausente, fugidio e a expressão triste e cansada. Sim, muito triste e cansada… o que é que carregaria nos ombros? O peso de anos de trabalho? Um segredo de tonelada! Ou só o temor da doença?
Depois dos introitos habituais, passámos à questão
- Então diga lá… o que é que o preocupa? Do que é que se queixa? – disparei.
- É o estômago, doutor… isto não anda nada bom! – contristado.
- Não anda como?
- Anda aqui uma dor no estômago. Há mais de um ano… é aqui! – e apontava de mão aberta aquela zona vasta acima do umbigo onde convencionamos estar acomodado o estômago. – É uma dor que não me larga, misturada com ardor, azia, sei lá…
Estava dado o mote. Seguiu-se o ritual da pergunta e resposta e tentei perceber a dor: como aparecia, como aliviava, para onde irradiava, como era acompanhada e se havia alguma coisa de alarme. Nada parecia surgir de relevante.
- E diga-me,… neste tempo todo nunca foi ao médico, nunca fez exames? – sondei.
- … Pois, fiz… fiz uma… ah! Aquilo do tubo.- gagueja.
Boa! Já tem uma endoscopia feita.
- Uma endoscopia? – afirmei, perguntando.
- Pois, uma endoscopia. No principio do ano… em Fevereiro talvez. Não acusou nada, a não ser uma hérnia. – resignado.
Ah! Tem uma hérnia do hiato, e pelos sintomas tembém tem esofagite. Mas e a dor?…
- E tem aí o relatório, deram-lhe algum medicamento? – perguntei, descrente.
- Não trouxe o relatório…- confirmou
… O costume…
- Deram-me umas cápsulas… ahhh, Proclor. Tomei três ou quatro meses e nada – assegurou.
- Nada? – duvidei.
- Bem… a azia desapareceu…. E a dor também melhorou. Mas quando parei voltou tudo à mesma. – condescendeu.

Estava tudo dito, o momento crucial aproximava-se: o veredicto, a decisão. Entretanto há que seguir o ritual, observo o doente enquanto assento ideias. Sessenta anos, dor epigástrica com pirose, sem nada de alarme. Triste mas sem ansiedade ou mariquices…não tem nervos. Endoscopia feita há seis meses, .. local seguro, nada de grave. Não vi o relatório mas é sempre a mesma coisa, devem pensar que é segredo! Pode ser refluxo, melhorou com omeprazole e depois piorou. E a dor?…
Exame objectivo normal, escrevi.
- Penso que o senhor tem uma esofagite de refluxo, com um componente de dispepsia funcional…. – proclamei – A endoscopia que fez há seis meses deixa-nos seguros – e fiz o sorriso calmo e seguro. Será que funciona?
- O doutor é que sabe… - resignado.

Seguiu-se a cartilha: insistir na dieta, novo medicamento, igual mas melhor, fazer umas análises que há muito tempo não faz e rever após um mês.
Quando nesse fim de tarde voltava de carro para casa sentia-me satisfeito. Uma tarde relaxada, calma… dois doentes, tudo claro. Autoestrada, apontar o carro ao sol e vamos persegui-lo entre cerros e ribeiras, rumo a ocidente. Meter uma quinte calma, Highway to Heaven bem alto, fechar os olhos e descansar até Faro… o caminho é sempre em frente!