segunda-feira, outubro 31, 2005

 

Na consulta (II)

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Quando entrou na sala, parecia mais bem disposta que o habitual. Trazia até um ligeiro esboço de sorriso nos lábios, o que era uma verdadeira novidade... Sim, definitivamente não vinha com aquele ar zangado, meio-sofrido e meio-acusador, com que habitualmente me fulminava mal se assumava à porta. Ainda antes de se sentar, disse-lhe um "Olá, então como está...?" à defesa, já à espera do habitual "Pior, muito pior...!"
- Antes de lhe dizer, só de olhar para mim, o que é que o doutor acha? - ripostou de olho arregalado.
- Bem... pela sua disposição parece-me que, desta vez, finalmente temos melhoras - arrisquei.
- Sim... vê-se logo, não vê?... Estou muito melhor! - e sorria abertamente.
- Ahhh, está a ver... - também sorri.
- Pois, não é que não tivesse confiança no doutor... mas... - hesitou.
- Sim? - incentivei.
- ... mas fui ao doutor tal, em Lisboa, que me deu estes medicamentos... e melhorei! - finalizou.
- Ahhh - e morreu-me o sorriso nos lábios.

segunda-feira, outubro 24, 2005

 

De Serviço (VI)

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Soube mesmo agora que morreu o João P.
Já o conhecia há muitos anos, talvez cinco ou seis, desde que lhe colocámos uma gastrostomia percutânea. O João tinha uma paralisia cerebral profunda, com tudo o que isso significa: tetraparésia com atrofia e deformação dos membros, ausência de reflexo de deglutição, ausência de articulação de palavras... mas um olhar sempre vivo e esperto!
Nessa altura a situação clínica esteve muito complicada e, entre infecções respiratórias e entupimentos da gastrostomia, passava o tempo no hospital. Sempre trazido pela mãe, incansável e inconformada. Lembro-me que, nesses tempos, por diversas vezes falámos da ausência de possibilidades de qualquer recuperação, da possibilidade real de um "mau" desfecho e do que isso significava, para ela e para ele... Mas ela, a mãe, dizia-me sempre - Ahhh doutor, mas ele faz-me muita companhia, muita... e ele é esperto, percebe tudo... enquanto puder, faço tudo por ele!
Depois, por alguns anos, a situação estabilizou e até melhorou. Passou a vir menos ao hospital, quase só para substituir a sonda de seis em seis meses. Ia crescendo o que podia dentro daquele corpo mirrado e mantinha o tal olhar vivo. E, cada vez que me via continuava com aquele velho hábito, que lhe conhecia desde o início, de abanar a repetidamente a mão direita como que a dizer - Vai-te embora!... vai-te embora! Ele bem sabia que, às vezes, o "tinha" que magoar.
Nos últimos meses tudo voltou a piorar: estava constantemente em insuficiência respiratória e frequentemente ventilado na UCI pediátrica. Vi-o, a última vez, há um mês... o olhar já não era vivo, já não abanava a mão.
Hoje soube que morreu e, apesar de saber que seria sempre assim, não consigo de me deixar de lembrar da mãe, a dizer - Ahhh, faz-me tanta companhia...

 

Recordação

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Olhem para os céus da Dinamarca, cheios de uma claridade azul, fria...



Nyhavn, Copenhaga

sexta-feira, outubro 21, 2005

 

De volta

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Já voltei... cheio de novidades: Sou um poço de ciência!

sexta-feira, outubro 14, 2005

 

Uma homenagem

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Cancer Cells

"Cancer cells are those which have forgotten how to die".
(Nurse, Royal Marsden Hospital)

They have forgotten how to die
And so extend their killing life.

I and my tumour dearly fight.
Let's hope a double death is out.

I need to see my tumour dead
A tumour which forgets to die
But plans to murder me instead.

But I remember how to die
Though all my witnesses are dead.
But I remember what they said
Of tumours which would render them
As blind and dumb as they had been
Before the birth of that disease
Which brought the tumour into play.

The black cells will dry up and die
Or sing with joy and have their way.
They breed so quietly night and day,
You never know, they never say.

Harold Pinter, March 2002


Harold Pinter foi premiado com o Nobel da Literatura. Este poema foi "roubado" à minha amiga T, no Dias Que Voam.

PP: Vou a Copenhaga, aprender qualquer coisa. Volto de hoje a oito dias.

quinta-feira, outubro 13, 2005

 

Cheirar os lóquios

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Veio-me hoje à memória, de repente, nem sei bem porquê.
Foi há muito tempo, ainda era eu um interno novinho acabado de chegar ao Hospital de Faro. Entre as rotações dos estágios, lá me coube passar pela Ginecologia-Obstetrícia, o que era uma coisa que não me entusiasmava muito, diga-se. Logo no primeiro dia, ainda mal tinha posto o pé no piso, apareceu o Dr. X, diz-me - Então és tu o novo Interno Geral? - e, sem esperar sequer pela resposta, arrastou-me para dentro da enfermaria - Vem cá que te vou explicar o teu trabalho! E o meu trabalho era exactamente cheirar os lóquios... após breves 5 minutos de explicação técnica, terminou - Começas aqui... vais até à cama 22! - Pois não havia mais nada a dizer, vinte e duas puérperas esparavam por mim!
A tarefa era simples mas árdua: abeirarmo-nos da puérpera - mulher no pós-parto - apresentarmo-nos, fazer 2 ou 3 perguntas, palpar a parede abdominal para avaliar o volume uterino, pedir para baixar a cuecas e expor o penso, flectir ligeiramente o troco e.... cheirar os lóquios! O objectivo era detectar precocemente qualquer sinal de infecção - que pode ser muito grave nos pós-parto - coisa que me deixava deveras preocupado: todos os cheiros me pareciam esquisitos e suspeitos!
Logo no primeiro dia, ainda antes da cama 10, detectei um cheiro que só podia ser infecção da grossa. Fui logo a correr dizer ao Dr. X que estava na sala de trabalho, a meditar. Despachou-me em meio minuto - Cheiro fétido!!... Cheiro fétido!!... Tem juízo, isso é de não se lavarem! Tu só tens que cheirar tudo... Se alguma tiver febre dizes-me e pomos um antibiótico!
Voltei à enfermeria muito acabrunhado mas algo aliviado... Se eu só tinha que cheirar e mais nada, cheirava na correcção e não refilava. E ao fim dos três meses de estágio já estava um perito naquilo, já cheirava até de olhos fechados e captava todos os odores e aromas possíveis. Até já era capaz de dizer, só pelo cheiro, se a puérpera era jovem ou entradota, gorda ou magra, bonita ou feia, de primeiro dia ou já no terceiro. Sim, fiquei capaz de detectar todos esses ricos promenores... menos uma infecção. Porque nunca "houve" nenhuma: se alguma tinha febre, punha-se logo um antibiótico!

sexta-feira, outubro 07, 2005

 

Na Consulta

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Triste e abatida, sentou-se na cadeira e disse - Isto agora é que anda mesmo mal, doutor... Não me levanto daqui enquanto não me receitar qualquer coisa que me ponha boa!
E ali ficamos a falar disto e daquilo, pergunta e resposta... Acho que ainda lá estamos.

segunda-feira, outubro 03, 2005

 

Outro aparte

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Tal e qual uma avalanche, o Outono entrou por mim adentro.

domingo, outubro 02, 2005

 

A vizinha

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Era noite cerrada, de madrugada mesmo e eu dormia e sonhava com qualquer coisa boa, de certeza. Lá longe, alguém começou a bater à porta - bum! bum! bum! - ineterruptamente e cada vez mais alto - BUM! BUM! BUM!. No meio do sonho, fingia que não ouvia e esperava que alguém fosse antender - Vai lá... está alguém a bater à porta! - Virei-me para o outro lado e continuei a sonhar... ou melhor, agora já fingia que sonhava - Vai lá... parece que está alguém a gritar!
Levantei-me cambaleante e desci as escadas. O matraquear na porta não acabava e, de facto, gritavam - Ajudem-me... Ajudem-me... a minha mulher...! - Abri a porta e era o vizinho do 3ºD. Estava visivelmente descontrolado, olhos desorbitados, falava, gesticulava e não se percebia nada.
- Calma... tenha calma e conte lá!
- A minha mulher.... a minha mulher...
- Sim...
- Teve uma trombose...
- Uma trombose?
- Sim, está toda apanhada... não se consegue mexer!
Ora esta, não devia ter uma trombose... Eram novos - pelo menos da minha idade - e aparentemente saudáveis. Não, não devia ter uma trombose! Vesti mais qualquer coisa e fomos os dois a casa dele.
Entrei no quarto e lá estava ela... Estava completamente esticada na cama, pescoço, tronco, perna e pés, como que inteiriçada. Só os braços estavam flectidos sobre o peito com as mão firmemente cerradas. A face olhava, ligeiramente, para trás e para cima, e mantinha a boca semi-aberta num permanente esgar de medo e surpresa. De dentes cerrados, respirava ruidosamente e balbuciava qualquer coisa que não conseguia perceber. Não, decididamente não tinha uma trombose.
- Olá... - e sentei-me na cama - Então diga lá o que é que sente!
- Não consigo falar...
Peguei-lhe no braço e tentei-o esticar... nada: tinha uma tensão e rigidez surpreendentes.
- Não consegue mexer o braço?
- Não... não consigo mexer nada!
- E sente eu a mexer-lhe no braço?
- Não... só sinto formigueiros!
- E a mão?... Tente lá abir a mão!
- Não consigo!
O marido, sempre a espreitar na soleira da porta, disse ai e começou a chorar. Ela também soltou as lágrimas e respiração ficou mais ruidosa.
- Calma... Vamos com calma e já resolvemos isto!
- ...
- Foi a primeira vez que isto aconteceu?
- Sim!
- Tem algum problema de saúde?
- ...
- Anda a tomar alguns medicamentos?
- Ahhh... tem andado com uns problemas de nervos, anda a tomar uns medicamentos!
- Bom, acho que não tem nenhuma trombose... isto é só um efeito do sistema nervoso.
- ...
Pedi para ver os medicamentos que tomava e, a custo, lá lhe demos uma Serenal 30. Aos poucos fui-lhe mobilizando os membros, a espasticidade foi passando e a respiração normalizando. Fui sondando se estava a fazer a medicação certa, se tinha tido algum aborrecimento no emprego... ou familiar, se tinha ocorrido algo fora do comum nesse dia, mas nada: o marido retraia-se e ela não respondia a nada. Passados dez minutos já estava, na aparência, completamente bem.
- Ok... está tudo bem. A tensão e o pulso estão normais, não tem febre, a mobilidade dos membros voltou ao normal.
- ...
- Eu penso que isto foi uma crise de ansiedade.
- ...
Continuavam estranhamente calados: não pareciam estar aliviados, antes muito constrangidos. Agradeceram e mostraram querer ver-se livres de mim, rapidamente. Aconselhei a consultar o médico de familia no dia seguinte e despedi-me. Voltei à cama e ao sonho que tinha deixado para trás.

Continuei a vê-los quase todos os dias... ainda perguntei, da primeira vez, se estava tudo bem e disseram que sim, que estava tudo bem.
E nunca mais falaram no assunto. Talvez tenham razão, existem coisas que não se contam a um simples vizinho, mesmo que seja o médico que por lá passou numa situação de aflição!